URBANIDADE: UM NOVO CAMPO DE ESTUDO?

Categoria: Ciências sociais aplicadas: Arquitetura Imprimir Email

EVARISTO GIOVANNETTI NETTO

Serão urbanismo e urbanidade duas formas diferentes de pensar a realidade urbana? Poderá a complexa realidade ser desvendada e seus temas, problemas e tensões serem filtrados por um único olhar, por uma única disciplina, por uma formação acadêmica que toma a cidade como objeto de estudo quase exclusivo?

Poderá ainda a realidade urbana, pela sua natureza mesma, multifacética e policromática, revelar-se por inteiro através de um olhar imperialista que exclui e/ou subestima a contribuição dos demais olhares e perspectivas?

O urbanismo é uma técnica, uma arte de edificação e organização das cidades, um conjunto de procedimentos que orienta e regula as intervenções no espaço urbano, um saber especializado, um corpus disciplinar que toma por objeto o urbano (a cidade, quer dizer, um universo) e a urbanização (um processo que se desenvolve na História e nela de desenrola como um carretel de muitas pontas).

Como tal, resulta de um saber e de um processo acadêmico que busca ordenar práticas, conceitos, técnicas e instrumentos que constituem apanágio de uma atividade profissional que, se apresenta vantagens e virtudes, nem sempre consegue evitar alguns vícios e, tampouco, logra evitar o erro intelectual (e também moral) representado pelo exacerbado egocentrismo, de sobrelevar sua importância e considerar prescindíveis contribuições de outra origem.

Esse imperialismo teórico-metodológico, sempre acompanhado de uma atitude jactanciosa e pelo qual outros profissionais, entre eles historiadores, sociólogos, antropólogos e geógrafos já pagaram alto preço, pode custar caro também àqueles que tomam por objeto a cidade e não levam na devida conta a natureza desse fenômeno que implica, sobretudo, tornar mais amplo o campo de estudo no qual ela se inscreve e abarcar a pluralidade de aspectos de que se reveste e que um olhar que sobrevaloriza aspectos construtivos e/ou estéticos nem sempre consegue ou pode considerar.

Parece pouco razoável tomar a cidade e a realidade espacial por objeto de estudo e intervenção sem considerar a vida urbana em sua plenitude, o modo e intensidade com que ela flui pelas artérias, as formas de navegação social urdidas na luta pela sobrevivência, a circulação de homens e mulheres de todas as idades e etnias, e, também, das mercadorias e bens, o fantástico mundo do trabalho, da cultura e da técnica, as várias etapas históricas pelas quais passou e que nela deixaram sulcos profundos, que a ninguém, muito menos um profissional qualificado, é permitido desconsiderar ou amesquinhar. A vida urbana se inscreve na realidade espacial e também no devir e o tempo, esse pássaro de natureza vaga,¹ que transforma em passado tudo o que toca, deixa nas cidades e naqueles que nelas habitam, marcas e fissuras, sangramentos e antinomias.
As cidades migram, volatilizam-se os limites e a cultura que engendram se mescla e enriquece no contato com todas as outras, o modo de vida urbano desenvolve mecanismos de adaptabilidade que nos surpreendem a cada instante, tempo e espaço tornam-se moedas conversíveis, nenhuma fronteira subsiste, a não ser aquelas que, teimosas, acadêmicas e artificiais, ainda separa aqueles que a tomam por objeto de atenção e estudo.

A dinâmica voluptuosa das grandes cidades com suas contradições, conflitos e tensões tem afrontado e muitas vezes derrotado, inúmeras tentativas e projetos de planejamento urbano que, entre outras coisas, não consideraram o valor da natureza, do povo e da cultura como referências essenciais ou permaneceram cativos de um saber superespecializado, a despeito da ênfase que atualmente se atribui aos estudos e encontros de natureza interdisciplinar.

Houve tempo em que um grupo de estudiosos sensíveis aos temas e problemas dos grandes centros urbanos optaram por definir um campo específico de pesquisa capaz de desenvolver metodologias e conceitos que respondessem aos desafios que as grandes concentrações humanas apresentavam. Nasceu então a Escola de Chicago e a sociologia urbana, que, pelas mãos de Robert Ezra Park e Louis Wirth, entre outros, apontou para o estudo do comportamento humano no meio urbano, do modo de vida urbano e da cultura urbana, considerando a cidade como geradora dos mais variados efeitos na vida social. Foi um passo importante e os resultados foram apreciáveis.

Agora se trata de dar mais um passo, pois as cidades que temos diante de nossos olhos perplexos, já não são as cidades das primeiras décadas do século XX, nem mesmo as cidades do pós-guerra. As cidades, as grandes concentrações humanas que tomam a forma de megalópolis, no bojo de mais uma revolução tecnológica – a revolução informacional – e de um processo de globalização, reclamam novos conceitos operacionais, novas metodologias e a definição de um novo campo inteligível de estudo onde as cidades possam se inserir.

Esse novo campo inteligível de estudo não pode ser definido por um saber especializado refratário ao intercâmbio de idéias, conceitos e métodos, tampouco por uma tecnoburocracia enquistada no aparato do Estado. Não se pode esperar também que venha florescer nas modorrentas salas de aula ou na rotina da vida acadêmica. É menos provável ainda que frutifique nos seminários e simpósios de natureza interdisciplinar que se tornam tanto mais freqüentes quanto entediantes e pouco produtivos, afinal a verdadeira interdisciplinaridade começa dentro de cada campo de estudo particular na medida em que se afirma a primazia e centralidade do conceito de totalidade e, a partir dele se derrogam interditos e fronteiras alimentados uns e outros pelo erro capital do egocentrismo a que se fez referência acima.

A Urbanidade, que não é um “ismo” e, por conseguinte tem uma abrangência muito maior, é um predicativo de todos e não de alguns, passa por cima de todo saber especializado e acadêmico, mas incorpora a experiência de todos eles, de preferência escoimada dos vícios e limites que a vida acadêmica e profissional não logrou, e talvez, nem possa evitar, em face dos seus próprios condicionamentos.

Assim, há que se pensar a Urbanidade, que está para a Humanidade, assim como está o Urbanismo para o Humanismo, como o terreno comum e lugar natural onde se encontram uma grande quantidade de linhas de estudo, com seu acervo de métodos e técnicas e, naturalmente, de conquistas no campo do conhecimento. A isto se chamou num passado não muito remoto – meados dos anos sessenta – de Equística, pelas mãos de Constantino Doxiadis, um pioneiro do estudo unificado das colônias humanas e, depois, pelo olhar penetrante de Arnold Toynbee, que logo percebeu que a história das colônias humanas e da cidade que tende a abraçar um mundo, constitui uma unidade e também uma promissora linha de enfoque para um estudo unificado da história dos assuntos humanos. Unidade na qual estarão comprometidas e inextricavelmente amarradas todas as disciplinas, entre elas a História, a Economia, a Política, a Sociologia, a Antropologia, os estudos referentes às comunicações, o planejamento urbano, a tecnologia e, naturalmente, a Arquitetura.

Há que se pensar a Urbanidade, esse formidável e fascinante espaço permeado por um mundo de relações, como uma resposta para uma realidade que se torna sempre mais complexa e desafiadora, o que implica reconhecer a necessidade de estudos unificados e, naturalmente, conceber instrumentos novos e mais eficientes de administração municipal condizentes com o caráter de cidade-mundo ou cidade global, instrumentos que possam articular diferentes níveis de participação da população no processo decisório com uma administração ágil, racional, eficiente e poderosa. (Pode a administração de uma cidade-mundo ser refém de uma câmara municipal, por exemplo? Por quanto tempo permaneceremos atados a um sistema de representação viciado e inadequado?)
Está-se a pensar num campo de estudo, mais que numa disciplina, autônomo, no sentido de que não apareça como apêndice do Urbanismo. Um campo de estudo capaz de [1] desenvolver métodos específicos que tenham por referência os objetos, temas, problemas e questões que o fenômeno urbano suscita; [2] considerar a natureza do espaço e as relações que nele se travam, relevando a força do lugar, a dimensão espacial e humana da vida cotidiana, as tramas que se atualizam a cada movimento, expressando atos, anseios, necessidades que encontram expressão local, mas que são, ao mesmo tempo universais (dizia um poeta que é universal, aquele que melhor conhece o seu quintal); [3] relevar que o modo de ser, agir e pensar urbano não reconhece fronteiras, senão para ultrapassá-las, num mundo que se move em infinitas rotações por minuto; [4] levar em conta a tecnologia como uma forma de relação entre o homem e o meio, através da qual criam-se, redefinem-se e reatualizam-se constantemente os espaços; [5] estabelecer um vínculo entre as esferas do real e as disciplinas que delas se ocupam e, a partir delas constróem ou buscam construir um objeto de estudo; [6] considerar que quando se toma por referência o espaço, a cidade, desdobra-se ante nossos olhos um mundo de relações que transcende a realidade física, mas abarca, sobretudo, a experiência humana (aqui está algo que nenhuma disciplina particular tem o direito de desconsiderar) em sua rica variedade que compreende as estratégias urdidas por homens, mulheres de todas as raças e idades e o modo como cada grupo social, para não falar das tribos urbanas, engendram para trazer a experiência da cidade para dentro de si, para dentro de sua própria experiência, conceber meios de apropriação e circulação por um espaço que se quer e se pensa público, nele imprimindo marcas singulares; [7] conceber um corpus que permita considerar também a categoria de tempo, no qual a história da cidade e a própria urbanidade, entendida como maneira de ser e estabelecer relações, vivencia o espaço e nele se revela; [8] estabelecer um vínculo entre técnica e espaço, embutindo aí o modo como a vida é atingida por uma infinidade de objetos e aparelhos que povoam nossa casa e todos os espaços pelos quais circulamos e o modo como ficamos vulneráveis à volúpia da informação e ao império do efêmero e do descartável; [9] sobrelevar a categoria de tempo, na qual a história da cidade se inscreve, compreendendo o tempo do processo de trabalho, da circulação, do lazer.

Não se pode olvidar que a cidade é arquivo e fonte da História e, como tal, guarda registros e documentos dos vários momentos pelos quais passou e que ficaram guardados na forma de obras e documentos escritos e que esse passado se incorpora ao presente (o passado, dizia um pensador, não conhece seu lugar, está sempre presente) e nesse sentido, a própria Arquitetura é um precioso registro da vida social, que, por conseguinte, importa preservar.

Não reivindico qualquer originalidade nesta proposta, posto que outros, reconheceram a necessidade imperiosa de que as grandes concentrações humanas fossem objeto de um estudo integrado que viabilizassem intervenções igualmente integradas. Afirmar o direito à cidade é uma questão essencial, mas como passo inicial para uma compreensão abrangente e profunda da Urbanidade é reconhecer, como desejava Henri Lefebvre, que nenhum conhecimento no campo das ciências humanas (e existe ciência que não o seja?) é possível sem uma dupla crítica, a crítica da realidade que se deseja superar e, da mesma forma, a crítica dos conhecimentos adquiridos e dos instrumentos conceituais do conhecimento que se está a urdir. Ficava claro para esse importante pensador francês que todo planejamento urbano claudica quando se diz como as cidades deveriam ser sem ter aprofundado e esgotado a análise de como elas são concretamente e sem levar em conta as forças profundas que as movem.

Se nenhum conhecimento da realidade é definitivo, até porque a realidade muda a cada instante e a face da cidade se transfigura, há que se considerar que o conhecimento da realidade urbana só pode ser fruto de uma multiplicidade de olhares, até mesmo daqueles não comprometidos com o rigor científico, mas cujo mister lhes permite penetrar fundo na natureza do homem e infundir luz àqueles aspectos minimais da vida cotidiana (agora estou a pensar no poeta e no romancista, podemos prescindir deles?)

Cabe, por fim, reconhecer a capacidade integrativa do urbano, da vida urbana em sua plenitude. Poderão os diferentes ramos do conhecimento humano permanecer refratários ao apelo do urbano, da urbanidade, se ramos são de uma mesma árvore e se uma mesma raiz os alimenta? 

¹ Orgulho (Paulinho da Viola/Capinan) In: A DANÇA DA SOLIDÃO, Odeon, 1972.

Referências Bibliográficas:

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11. TOYNBEE, Arnold J. [1975] – O DESAFIO DO NOSSO TEMPO. Rio de Janeiro: Zahar, 2ª.ed.
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Evaristo Giovannetti Netto é Doutor em História pela PUC-SP e professor do Centro Universitário Belas Artes.

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