O sonho como método literário de I a IV (revisão 2023)

Categoria: Literatura Escrito por Ricardo Carranza

RICARDO CARRANZA

I

Enquanto percepção, sonhar é semelhante a assistir a um filme. Acompanhamos a sucessão de imagens, este suporte central do sonho, com notável envolvimento emocional. A comparação, entretanto, não deve ir além da ideia geral; adotando a razão como parâmetro – apesar de suas limitações, ainda não tivemos instrumento melhor para a prospecção de um mundo que nos envolve nem sempre de maneira auspiciosa, nos confrontamos com um abismo entre aquele meio difuso de entretenimento e a experiência desconcertante que nos assalta durante o sono. Sem uma introdução, desfecho ou coerência entre as partes, o sonho evidencia o descentramento na relativa unidade do sujeito que sonha. A potência emocional pode ser tão forte que nos debatemos e levamos alguns segundos, depois que acordamos, até perceber que a nossa cama continua no mesmo lugar.

De minha parte, já vivenciei sonhos tão claustrofóbicos que mesmo depois de acordado a terrível emoção onírica parecia seguir apegada ao meu corpo; então eu acendia a luz e caminhava pela casa como forma de me livrar de sua presença repulsiva. A experiência é paradoxal por excelência. Durante o sonho, imersos numa atmosfera fugidia, estamos sempre diante da tabula rasa de nós mesmos. É com um sorriso complacente na comissura dos lábios que acompanhamos os estratagemas da ficção para inserir o sonho de uma forma que não reproduza a lógica da vigília e, ao mesmo tempo, se constitua em um elo na corrente da narrativa. Mais adiante veremos alguns exemplos de sonhos, buscando um contraste entre a obra de ficção e o relato – neste caso o mais objetivo possível pois, como sabemos, traduzimos apenas uma pequena parcela de nossa experiência onírica.

Sigmund Freud considera que a imagem do sonho se articula em duas camadas; uma que é percebida diretamente, e outra, oculta, a ser escavada mediante instrumentos da psicanálise que ele próprio estabeleceu. A primeira, apresenta-se com as informações imprescindíveis através de imagens comparáveis ao modelo real, mas deslocadas de seu contexto e legíveis através de uns poucos traços de luz; a segunda, de natureza simbólica, a ser cuidadosamente interpretada. Sendo assim, a verdade não nos seria dada diretamente pela percepção, mas por uma experiência que distorce o registro objetivo da percepção. Para a psicanálise freudiana, o homem não repousa em um estado de harmonia, pois é muitas vezes atingido por pulsões que, não raro, rompem com os limites da razão, embora se faça uso desta para o discernimento daquelas.    

Freud afirma que o sonho tem a função de nos proporcionar a vivência de desejos reprimidos. Imagine uma criança que faz birra para comer. Os pais então adotam subterfúgios, umas brincadeirinhas para que o filho aceite o alimento. O inconsciente, ainda segundo Freud, também faz uso de artifícios para que experimentemos alguma coisa que nos é restrita em nosso estado de vigília. No sonho, ao provarmos a guloseima lembramos que se trata – e como não havíamos percebido de imediato! – daquela sobremesa que mamãe nos preparava em nossa ditosa infância. E no doce onírico há o ingrediente sutil do desejo reprimido, não raro, sempre segundo Freud, de natureza sexual.

Devemos salientar aqui o grande respeito que nutrimos por Sigmund Freud. O homem é um dos pilares do século XX; ampliou as fronteiras do conhecimento e criou uma profissão cada vez mais presente em nosso dia a dia. Por outro lado, os contornos da psicologia que estabeleceu desde 1900, data da publicação de A Interpretação dos Sonhos, tem se alargado e modificado. Os avanços no campo da neurociência têm evidenciado a imaterialidade de instrumentos capitais à psicanálise, tais como: Id, Ego, Superego, Complexo de Édipo, para citar alguns dos mais destacados. De nossa parte, nos parece evidente que tais conceitos possuem uma localização específica no Hipocampo. Freud, com um grão luminoso de genialidade, percebeu que o nosso comportamento não é cem por cento domesticado e que experiências sombreadas assumem o controle nos momentos mais inesperados, como o gatinho que solta um pum ao ser manuseado pelo veterinário-intruso ou a pequena aluna de piano que faz xixi no banquinho em sua primeira aula ou ainda o ato falho constrangedor durante a reunião elegante.

Freud buscou uma estratégia de acesso aos comandos que estariam por trás de nossa aparente respeitabilidade. Com sua formação acadêmica, vasta cultura livresca e uma inteligência e disposição incomuns para o trabalho, Freud conseguiu nos impor a existência, se esta é uma boa palavra, do Inconsciente, um conceito tão obscuro quanto imprescindível ao desenvolvimento da psicanálise. Ao mesmo tempo, construiu o arcabouço que alcançaria aqueles comandos capciosos, e que hoje nos parecem óbvios como o ovo de Colombo: a relação parental, a sexualidade, a repressão e a pulsão de vida e de morte. Freud estabeleceu uma linguagem dos sonhos como uma estratégia de acesso além do véu das aparências do sujeito que sonha – que traduzimos tão livremente quanto literariamente, como sendo – densa, elíptica, ambígua e vertiginosa como a Poesia de Lautréamont. No mundo freudiano as coisas nunca são o que parecem ser, o que faria com que a ingenuidade de um Alberto Caeiro fosse realocada à estante de literatura infantil. Pensamos então em uma linguagem dos sonhos menos no sentido técnico do termo, mas sim numa viável atribuição de significados linguísticos como pretendemos expor mais adiante.    

II

Passamos agora ao relato do sujeito que sonha.

O sonho de Edite.

Ela se encontra na presença do pai no interior da residência que juntos acabaram de construir. O clima era de satisfação; agora sabiam que as dívidas seriam pagas. Em que lugar da casa vocês estavam, perguntei? Na sala de estar, ela disse. O ambiente era claro? Ela foi lacônica – Sim. E a aparência de seu pai? Como era? – Não sei, e acrescentou com certa relutância, acho que mais moço um pouco, talvez sessenta anos, mais ou menos. E a roupa? Como ele estava vestido? Foi taxativa – Não sei. Ficamos em silêncio. Pensei que a morte do pai não fora plenamente digerida, e é provável que nunca seja por completo, e o sonho, nas suas imagens literais, o que mais teria a nos dizer? A nossa resposta é bastante simples: nada mais sabemos. Para nós o sonho não é produzido por algum tipo de inteligência que se sobrepõe ao sujeito que sonha, mas uma produção aleatória de um Soma temporariamente descentrado. Tema e repertório, sobredeterminação segundo Freud, são tudo aquilo que, no nosso entendimento, estiver mais a mão desde que, em um determinado momento histórico, ganharam pregnância, isto é, fatos enraizados na emoção, esta aliada incondicional da memória. No sonho da Edite, o gancho ou sobredeterminação veio de uma reunião sobre o inventário da casa. E não era uma casa qualquer, mas justamente a casa em que filha e pai atuaram juntos na sua construção. Dado o contexto, o Soma produziu aleatoriamente as imagens descritas mais acima.

As imagens dos sonhos, como a boa literatura, são claras e densas. No sonho de Edite, se a roupa do pai não foi notada, assim como muitos outros detalhes, se eles estavam sentados numa poltrona ou cadeira, ou de onde vinha a luz, por exemplo, foram desconsiderados; o sonho não é cenográfico. Também não podemos deixar de considerar que a imagens oníricas, ainda que carregadas de emoção, são fugazes emanações, como dissemos anteriormente, de um cérebro temporariamente descentrado.     

As linguagens de ficção como o sonho tem em comum dois eixos alicerçados: a percepção direta e o conteúdo sob uma estrutura de detalhes que se articulam no tempo. Embora o sonho seja em essência uma sequência de imagens, não possui parentesco com as Artes Visuais em geral. Quando contemplamos uma pintura nosso olhar passeia livremente de um ponto a outro do campo visual no que colhemos as impressões que vão, aos poucos, formando uma imagem subjetiva. Mas ao abrirmos um livro uma ordem se impõe. São palavras e frases e parágrafos cuja compreensão depende de um muito bem determinado encadeamento. Homero, na sua Odisseia, descreve o acesso de Odisseu a um palácio mediante o transpasse de sua soleira dourada. Joyce, cuja obra Ulisses possui deliberada relação com a matriz grega, descreve a saída de Bloom ressaltando apenas a mão do personagem tocando a maçaneta de casa. Como num sonho, não há menção a batente, fechadura, folha da porta, parede, cores, etc. No sonho como na ficção o conjunto se submete ao detalhe, e o encadeamento dos detalhes no tempo é o caminho clássico da narrativa. Nesse aspecto sonho e ficção possuem algo em comum.

Sonhei que o meu cabelo era longo, ralo e luminoso. Eu o penteava e os nós na extremidade dos fios ficavam presos no pente. Como não poderia desembaraçá-los, esta era a condicionante do sonho, eu me questionava, de forma intuitiva, por que ou para quê um pente retido no cabelo embaraçado.[i] Tal pente, como acontece frequentemente nos sonhos, não era visível. Como num jogo de mímica, a ação de mexer no cabelo era o bastante para a compreensão da presença do pente. A imagem do longo, ralo, claro e luminoso feixe de cabelo, era única no sonho. Eu sabia que se tratava do meu cabelo, apesar do comprimento e aparência serem tão diferentes do meu cabelo real, e de não estarem associados ao meu corpo. A sensação, entretanto, era de tranquilidade.

As imagens dos sonhos em geral têm o poder de evocar, como na ficção, toda a espessura de uma situação complexa através de um único detalhe, todo um arcabouço fica subentendido.  É assim quando vemos uma pessoa que conhecemos, por acaso, no caminho do supermercado. Basta um olhar e toda a situação é compreendida de imediato e em profundidade. Diante da presença inesperada, nosso ânimo velado, para o bem ou para o mal, aflora de imediato. No sonho da casa a situação toda era compreendida, em profundidade, mediante a imagem do pai. A situação, em toda a sua complexidade, repito, era entendida ou intuída, de um golpe: todas as etapas da construção da casa e a satisfação de sua conclusão, além da imagem do pai, compreendida com um quase nada de corpo visual. A linguagem do sonho nos lembra a imagem de Hemingway para a literatura: como um iceberg, uma pequena parte é visível em proporção à colossal massa submersa.

No sonho o sujeito se confronta com situações que lhe escapam do controle, como no caso das pulsões, que rompem com sua autonomia. Muitas vezes são imagens desagradáveis em flagrante descompasso com a percepção objetiva. O que nos é familiar, amistoso, na vida real, em um sonho pode ser ameaçador. Também um certo grau de desconhecimento está presente no contexto do sonho. Quando acordamos não temos dúvida de quem somos e de onde estamos. No sonho o sujeito não se desloca ou passeia o olhar sobre o pai ou o cabelo, mantendo os exemplos já mencionados. Tal procedimento é o comum no estado de vigília. No sonho não se trata de uma imagem convencional, portanto, a ser investigada pela percepção. Não temos essa desenvoltura por que no sonho somos induzidos pelo Soma que descentrado toma as rédeas de nossas memórias que foram enraizadas pela emoção. Diante de uma pintura, ou paisagem natural, conforme exemplificamos anteriormente, o observador se desloca ao seu bel prazer. Em um sonho, a imagem se faz com poucos traços de luz e de imediato, insisto neste ponto, sabemos o que vemos: é o meu pai, a nossa casa, o meu cabelo, deslocadas do seu contexto original. Todo sonho é uma síntese de registro e emoção em uma ordem que evoca o absurdo, entretanto passível de ser manuseada mediante atribuição de significados razoáveis e assim, em algum momento, algo que faça sentido emerge, pois o sentido é uma necessidade humana.

III

Sentado na poltrona leio um romance durante uma ou duas horas. Continuarei depois a leitura ou caso a obra não me seja estimulante irei realocá-la na estante. Em um sonho a autonomia normal da vigília é suspensa. O sonho não é uma escolha, mas uma disposição do Soma pelo bem da saúde. Em um sonho seguimos os acontecimentos, como em um livro, mas com uma diferença crucial; na literatura, embora o envolvimento ocorra a ponto de nos emocionar durante as conquistas e derrotas dos personagens, sabemos que é ficção. Na literatura, a qualquer momento, e sob qualquer pretexto, posso largar o livro. Em um sonho é a nossa vida que parece estar em jogo. A emoção está presente em um índice elevado e fora do nosso controle. Quem não acordou, no meio da noite, gemendo, de um pesadelo desesperador? Lembro que o meu pai, nos últimos anos, tinha um sonho recorrente: havia um cachorro debaixo da cama. Não raro acordava, e a nós todos, gritando de medo pânico. E era sintomático como ele estranhava o fato de ter tanto medo de cachorro no sonho, sendo que no seu estado de vigília o cachorro sempre lhe fora amigável. No sonho o cachorro não era um cachorro, mas a aparência de um cachorro investida de um conteúdo paradoxal; a dissonância entre percepção e conteúdo, claramente compreendida a partir de Freud, faz com que o sonho seja um desafio no mundo da ficção como veremos a seguir.

IV

O sonho de Stephen Dedalus.

Silenciosamente, em um sonho, ela lhe aparecera depois da morte. Seu corpo gasto dentro de largas pardas vestes funéreas exalando um odor de cera e pau-rosa, seu hálito pendente sobre ele, mudo, repreensivo, um esmaecido odor de cinzas molhadas. Ulisses, Joyce, 1975.

Priorizando sempre a unidade da narrativa romanesca, Joyce nos apresenta um sonho com absoluta aderência aos fatos vividos pelo seu alter ego Stephen Dedalus e, portanto, sem nenhum contato com as evidências da psicanálise.

Joyce, leitor de Shakespeare, compreende os ditames da harmonia. No tragédia Hamlet, a aparição do espectro em armas se dá, em um primeiro momento, na plataforma diante do castelo, durante a guarda noturna. Depois, nos aposentos da rainha, o fantasma apresenta-se em camisolão (In-quarto, 1603). A descrição da vestimenta do rei seria suprimida na versão definitiva do Hamlet. Shakespeare, e depois Joyce, percebeu que não cairia bem ao personagem trágico ter a aparência moldada pela sua vida privada; convenhamos, um rei espectro de camisolão desmantela a rigidez de qualquer personagem trágico. E aqui temos o duplo do sonho: aparência e conteúdo que para a narrativa de ficção deve se ajustar ao contrário da realidade onírica.

A concepção do sonho da morte da mãe de Stephen, imagem recorrente no romance de Joyce, surpreende pela complexidade sensorial. Eu tive a cabeça terapizada durante alguns anos e pude colocar a questão numa sessão mais informal. E a opinião da terapeuta coincidiu com a minha, sonhos com cheiro devem ser muito raros – se de fato são mensuráveis. Fui professor durante mais de duas décadas e em um momento de descontração perguntei à sala sobre sonhos com cheiro; um aluno afirmou, categórico, que seus sonhos tinham cheiro. E que cheiro, perguntei? – Sei lá, ele disse jogando os braços para o alto, de um jardim!

Escritor até a medula, Joyce desconsiderou, até certo ponto, a psicanálise em seu tempo. A Interpretação dos Sonhos, de Freud, é de 1900. Sabe-se, desde então, e ora repetimos, que em um sonho as coisas não são o que parecem ser. Conforme biografia, Joyce adotava uma postura muito pessoal em relação à interpretação dos sonhos, pois ele a reconhecia em alguma medida. Há uma passagem, pelo menos, em que Joyce, em carta, se propõe à interpretação mediante atribuições, a nosso ver, largamente literárias, conforme veremos mais adiante. 

As imagens em um sonho são semelhantes a um ideograma. Vale lembrar o exemplo de Décio Pignatari: sol entre ramos de árvore significando Leste. (cf. PIGNATARI, Décio. Informação, Linguagem, Comunicação. São Paulo: Perspectiva, 1968.) Mas no ideograma, árvore é árvore, sol é sol. Ideogramas são imagens convencionada e necessariamente isentas de ambiguidade como forma de atender à lógica da linguagem. Uma linguagem enquanto instrumento de comunicação deve ser em primeiro lugar regida pela clareza e precisão. Nesse aspecto o sonho seria dotado não de linguagem, no sentido estrito da função, mas de uma antilinguagem. 

Na abertura do Ulisses, Stephen, na Torre Martelo, recorda o sonho com a mãe; e no episódio Circe, do mesmo romance, a mãe, em terrífico estado de decomposição – a cara carcomida e desnasada, verde de mofo tumbal, retorna para assombrar o filho. No sonho de Stephen, e depois no ambiente alucinatório de Circe, a mãe é a mãe, aparência e identidade ajustados. A Interpretação dos Sonhos, de Freud, não seria de forma alguma, um facilitador ao fio condutor da narrativa romanesca.

Sonhos significam ruptura. Na Odisseia de Homero, o sonho é representado pela estadia de Odisseu na terra dos lotófagos. A ruptura da identidade do personagem se deve à presença da flor de lótus. Kafka e Borges enfrentaram o desafio apagando a linha que divide o sonho ou pesadelo da vigília, como em A metamorfose e Aleph respectivamente. Lewis Carrol manteve uma clara distinção entre os dois planos, tanto em Alice no País das Maravilhas como em Alice Através do Espelho. Grandes escritores muitas vezes adotam uma abordagem pessoal na inserção do sonho à narrativa de ficção. Vejamos alguns deles.

O sonho de Joyce.

 Tive um sonho curioso depois do balé russo. Sonhei que havia um pavilhão persa com dezesseis quartos, quatro em cada andar. Alguém cometera um crime, e entrou no andar de baixo. A porta abria-se para um jardim florido. Ele esperava escapar, mas quando chegou à soleira uma gota de sangue caiu nela. Eu sabia o quanto ele estava desesperado, porque subiu do primeiro andar até o quarto, esperando que a cada soleira sua ferida não deixasse cair outra gota. Mas ela sempre aparecia, um oficial a descobria, e pontualmente nos dezesseis aposentos a gota caiu. Havia dois oficiais em trajes de brocados de seda, e um homem com uma cimitarra, que o vigiava.

Você pode psicanalisar (nosso grifo) isso? Eu vou. Os quartos representavam os doze signos do zodíaco. As três portas são a Trindade. O homem que cometera o crime sou evidentemente eu. A gota de sangue deixada em cada soleira era cinco notas de francos que tomei emprestado de Wyndham Lewis (com quem Joyce passara a noite anterior). O homem com a cimitarra representa minha esposa na manhã seguinte. O pavilhão com treliças azul-claros era como uma caixa. (cf. ELLMAN, Richard. James Joyce. São Paulo: Globo, 1989, p.674.)

O sonho de Saint-Loup.

Uma vez em minha casa, vencido pela fadiga, adormeceu um pouco. Mas de súbito começou a falar, queria correr, impedir qualquer coisa, dizia: “Eu estou ouvindo... Não, não faça...”. Despertou. Disse-me que acabava de sonhar que estava no campo, em casa do sargento-mor. Este procurava afastá-lo de certa parte da casa. Saint-Loup havia adivinhado que o sargento-mor tinha em casa um subtenente muito rico e muito devasso e que ele sabia que desejava muito a sua amiga. E de súbito, no sonho, ouvira distintamente os gritos intermitentes e regulares que a sua amante costumava soltar nos instantes de volúpia. Quisera forçar o sargento-mor a levá-lo até o quarto. E este o retinha para impedi-lo de entrar, enquanto aparentava um ar ofendido com tamanha indiscrição e que Robert afirmava jamais poderia esquecer.

– Meu sonho é idiota – acrescentou sufocado.

(cf. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido – O caminho de guermantes, v.3, pag.136. São Paulo: Globo, 2007.)

Para que o sonho se ajustasse à narrativa, Proust desconsidera a condensação, a ambiguidade e o estranhamento, característicos dos sonhos reais, e nos apresenta um sonho verossímil, razoável e consequentemente artificial como o de Joyce. Gostaríamos de registrar aqui nosso desconhecimento de sonhos sensíveis ao som, ao menos de nossa parte eles inexistem. Nossos sonhos são constituídos principalmente de imagens carregadas de emoção.

 O sonho da senhorita Elvira.

A senhorita Elvira rola na cama, está desassossegada, impaciente, tem um pesadelo atrás do outro. A alcova da senhorita Elvira cheira a roupa usada e a mulher: as mulheres não cheiram a perfume, cheiram a peixe rançoso. A respiração da senhorita Elvira é ofegante, entrecortada, seu sono é violento e desagradável, seu sono de cabeça quente e pança fria faz o vetusto colchão queixar-se com rangidos.

Um gato preto e meio pelado, que sorri enigmaticamente como se fosse uma pessoa e que tem nos olhos um brilho assustador, atira-se de uma enorme distância, em cima da senhorita Elvira. Ela se defende a pontapés, a socos. O gato é atirado contra os móveis, repica como uma bola de borracha e salta de novo em cima da cama. O gato tem o ventre inchado e vermelho como uma granada, e, do furo do traseiro, venenosa, fedorenta e de mil cores, sai-lhe uma flor que parece um penacho de fogos de artifício. A senhorita Elvira cobre a cabeça com o lençol. Em cima da cama, uma multidão de anões se masturba enlouquecidos, com os olhos revirados. O gato se insinua, como um fantasma, descobre o ventre da senhorita Elvira, lambe-lhe a barriga e ri em grandes gargalhadas, umas gargalhadas de tirar o ânimo. A senhorita Elvira está espantada e o atira para fora do quarto: tem de fazer um grande esforço, o gato pesa muito, parece de ferro. A senhorita Elvira procura não esmagar os anões. Um anão grita “Santa María! Santa María!” O gato passa por baixo da porta, achatando o corpo como uma tira de bacalhau. Olha sinistramente, como um verdugo. Sobe na mesa de cabeceira e fixa os olhos na senhorita Elvira, com um jeito sanguinário. A senhorita Elvira não se atreve nem mesmo a respirar. O gato passa para o travesseiro e lambe-lhe a boca e as pálpebras, suavemente, babujando. A língua é morna como uma virilha e suave como o veludo. Desata-lhe a camisola com os dentes. O gato mostra seu ventre pelado, que lateja compassadamente, como se fosse uma veia. A flor que sai do seu traseiro está cada vez mais viçosa, mais bela. O gato tem a pele suavíssima. Uma luz ofuscante começa a inundar a alcova. O gato cresce até se transformar em um tigre delgado. Os anões continuam a sacudir-se desesperadamente. Todo o corpo da senhorita Elvira treme com violência. Ela ofega enquanto sente a língua do gato lambendo-lhe os lábios. O gato cada vez mais se estica. A senhorita Elvira vai perdendo a respiração, e tem a boca seca. Suas coxas se entreabrem, primeiro cautelosamente, depois sem nenhuma cerimônia...

A senhorita Elvira acorda de repente e acende a luz. A camisola está empapada de suor. Sente frio, levanta-se e cobre os pés com o casaco. Os ouvidos zumbem um pouco e, como nos bons tempos, os mamilos se mostram rebeldes, quase altivos.

Com a luz acesa, a senhorita Elvira adormece.

(cf. CELA, Camilo José – A colmeia, pag.284,285,286. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.)

O que nos parece interessante no artifício de Cela é que ele não pretende ser razoável. O sonho ou pesadelo da senhorita Elvira é um desfile de imagens, apoteótico, selvagem. E nele se desenha, passo a passo, a transformação do gato em objeto de desejo da senhorita Elvira a ponto de fazê-la excitar-se. Coerente com a linguagem dos sonhos, o gato é ambíguo, ainda que corresponda às necessidades de uma senhorita Elvira solitária e literalmente famélica. Personagem despossuído, a um passo do animal, encontra no sonho uma única possibilidade de humanizar-se.

Mas será em Dostoiévski, devido a estratégia da adoção do absurdo como forma, que encontraremos o sonho dos mais fidedignos e articulados à narrativa de ficção da literatura moderna.

 

O sonho de Svidrigailov.

 Já estava adormecendo; o tremor da febre havia passado; súbito algo pareceu correr por cima de suas pernas e de seus braços debaixo do cobertor. Ele estremeceu: “Arre, com os diabos, isso é quase um rato! – pensou ele. – Foi a vitela que eu deixei em cima da mesa...”. Ele estava com uma terrível falta de vontade de se descobrir, levantar-se, gelar de frio, mas num repente algo tornou a lhe roçar desagradavelmente o pé; tirou de cima de si o cobertor e acendeu a vela. Tremendo de frio febril, inclinou-se e examinou a cama – não havia nada; sacudiu o cobertor, e súbito um rato irrompeu no travesseiro. Lançou-se para captura-lo, mas o rato não descia da cama e corria em ziguezagues para todos os lados, escorreu-lhe dos dedos, correu por cima da mão e súbito sumiu debaixo do travesseiro; ele sacudiu o travesseiro, mas num abrir e fechar de olhos sentiu que algo lhe havia pulado em cima da barriga, roçava pelo corpo, e já nas costas, debaixo da camisa. Ele começou a tremer nervosamente e acordou. O quarto estava escuro, ele estava deitado na cama, enrolado no cobertor como há pouco, debaixo da janela o vento uivava. “Que coisa detestável!” – pensou agastado.

(Cf. DOSTOIÉVSKI, Crime e Castigo, pag. 513. Editora 34, 2001.)

Embora neste sonho o rato é semelhante ao rato físico, ele é também uma representação da conduta do personagem que desrespeitou as regras da moral vigente, como Rakólnikov, e a punição não vem da lei dos homens, mas de si mesmo, da consciência poluída pelo erro que cometeu e que, implacável, o persegue no sonho como uma extensão da vigília. Digno de nota, neste sonho Svidrigailov – o sujeito que sonha, não contempla uma imagem carregada de emoção, mas a tem colada ao corpo.

 Neste meu sonho que relatarei a seguir, é fato a procura da fidelidade ao sonho, antes que desaparecesse, quanto é provável que o preenchimento de lacunas, que se confundem com a memória do sonho seja provável.

 Meu editor esculpia um tronco de madeira. A escultura, que tinha a forma dúbia de uma figura humana – uma cabeça ou o corpo de uma mulher, brotava do tronco bruto na cor clara da madeira descascada. A escultura assentava-se no presumível chão. O editor e sua escultura estavam no centro do ambiente que era fechado, escuro. A escultura, agora visível na sua totalidade, e o escultor-editor, percebido com uns poucos traços de luz e sombra, permaneciam próximos. Havia a intuição da presença da água. Uma parte de uma grande barra de chocolate embalada em alumínio surgiu; sem uma localização espacial definida, ela era percebida como num close cinematográfico. O editor avançava com o seu trabalho de escultor. Uma nova parte de uma grande barra de chocolate, também sem uma localização espacial definida, e um pouco menor que a anterior, surgia envolvida em papel azul. Os dois chocolates eram alguma coisa de muito especial. Eu os via como imaginação no sonho. A embalagem da segunda barra, e que correspondia ao papel externo da embalagem convencional de um chocolate real, estava respingada de água e mal embrulhava o chocolate o que me deixava intrigado. Pensava que o chocolate perdera seu valor. O editor, sem um gesto ou palavra, dizia que isso não tinha importância e voltava ao seu trabalho com o tronco de árvore. Um pequeno grupo observava o andamento do trabalho do editor-escultor, sem que fosse muito bem delineado no ambiente escuro e inundado, embora a água, como sempre, fosse apenas pressentida. Eu observava com interesse o trabalho do escultor-editor com a vaga sensação de que poderia contribuir, de alguma forma, com a escultura.

Uma interpretação possível: o chocolate é o prêmio que o escritor – sujeito que sonha, espera de seu editor que, sem reconhecer sua função, dedica-se ele mesmo a um outro projeto estético. A frustração está presente na água e sua ameaça de inundação e no descentramento do sujeito que sonha, pois a atenção está voltada para o editor-escultor. Freud, muito provavelmente, veria no tronco de árvore algo na linha da menina-falo de Carrol, ambas imagens de condensação sexualizada.

V

Há algo em comum entre a palavra valise (portmanteau word) de Lewis Carrol, as aglutinações de James Joyce, o ideograma e a pretensa linguagem dos sonhos. Pela ordem, Carroll pode ser considerado o pioneiro na adoção de palavras que formam uma nova palavra, na medida em que fez dela um método. Joyce fez deste método o núcleo de seu Finnegans Wake. Em Carroll, entretanto, o sentido da palavra inventada desloca-se ao nonsense, em Joyce é um recurso espacial, coisas distantes são deslocadas de seu contexto encadeando-se à narrativa. Parece improvável que uma narrativa possa ser conduzida, de forma coerente, mediante construções verbais ambíguas, mas Joyce, em alguma medida, conseguiu a proeza no seu Finnegans Wake. Quanto ao ideograma, a associação de imagens é a raiz da comunicação de uma ideia ou um conceito abstrato. Sua representação gráfica, no longo processo histórico social da linguagem, assumiu um grau de simplificação que a analogia, na maioria dos casos, perdeu a conexão formal com a coisa que a originou (cf. CHILDE, Vere Gordon – A evolução cultural do homem. São Paulo: Zahar, 1981).

Freud relata um sonho em que chamava uma pessoa pelo nome de outra. Tratava-se de duas irmãs que Freud conhecia e, no íntimo, as achava muito parecidas. Freud destacou este sonho como um exemplo de condensação característico da linguagem dos sonhos. Através de um gancho, que Freud teorizou como sobredeterminação, no sonho uma situação introduz outra, como a casa no sonho de Edite, o pente e o cabelo no meu sonho, condensam percepção e conteúdo. Na tragédia de Sófocles, o Rei Édipo dormia com a rainha, aspecto exterior, desconhecendo que se tratava de sua mãe, o conteúdo profundo dissimulado. A situação permanece estável até o momento em que Édipo investiga sua origem. Então mãe filho, conscientes do crime que cometeram, culminam o desfecho trágico.

(cf. SÁ, Patrícia Noronha de. Tradução e Interpretação de Sonhos: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/22354/22354.PDF).

Sobre a autonomia entre percepção e símbolo: sonhei que estava enviando um correio que, por ser muito complicado, não era admitido pelo funcionário que o recebia. Depois de muitas peripécias, tão rápidas quanto fugidias, o funcionário resolveu empenhar-se, e a complicada remessa assumiu a forma de seu conteúdo exterior: uma porção de formulários em folhas duplas entremeadas de papel carbono, abas de envelopes, recibos, enfim, mil folhas que se amontoavam num calhamaço de pouco volume, por se tratar de um papel muito fino que lembrava o papel de seda, além de abas de papel craft que, como é característico da linguagem dos sonhos, eram visíveis e fugazes, mas sem contribuir para o volume de papéis que pareciam muito leves e um tanto espalhados. O sujeito que sonha sentiu-se grato pela boa vontade do funcionário e pensou em recompensá-lo, mas o dinheiro – escasso e obtido com dificuldade, e o maço de folhas que se constituíam na remessa, que contraditoriamente estava aberta, e não lacrada como são as cartas em geral, confundia o sujeito que sonha, e o dinheiro acabou caindo no chão, próximo ao funcionário, e desaparecendo em seguida. Ainda uma vez o sujeito que sonha pensou no dinheiro como a correspondência que não havia chegado ao seu destino e o esqueceu.

Esta, em linhas gerais, a descrição do sonho. Quanto ao significado, consideramos, livremente, que a carta pode ser a condensação de duas situações contraditórias: uma carta que, de fato, esperávamos da aposentadoria, e as remessas de originais que enviamos a concursos e editoras. A carta da aposentadoria, necessária ao saque do benefício, se condensa com as cartas enviadas aos concursos. Ambas têm como denominador comum o traço humano de ansiedade. E a aposentadoria pode representar o fim de um período, e as remessas o possível começo de um novo período.

Seja qual for a interpretação do sonho do correio, ou dos sonhos em geral, é provável que se multiplicaria em função de outros intérpretes, pois a verdade é tudo aquilo que admite mais de um ponto de vista.

 

 Nota: 

[i] Semanas depois de ter escrito este ensaio, estava lendo a Gramática Normativa de Napoleão Mendes de Almeida, buscava exemplos de metáfora na seção figuras de linguagem. Na passagem em que o autor cita os dentes de um pente, como uma centelha, eu recordei o meu sonho no qual o cabelo é a imagem central e o pente, embora o instrumento da ação de pentear, não era visível. Penso que pelo menos três questões estão implicadas neste insight. Primeiro, a elipse dos dentes do pente, que associamos ao ato de morder, componente agressivo oculto no sonho. Segundo o papel da ambiguidade na imagem condensada do sonho: o pente, que serve para desembaraçar o cabelo não cumpre a sua função, porque trava nos fios que deveria desembaraçar, caracterizando a condição de impasse. Terceiro, em se tratando de um cabelo longo, subsiste o símbolo da vaidade, e a falta, porque além do pente é necessário que se desembarace os fios com as mãos. (No filme Baleias de Agosto, a personagem, bastante idosa, pede à irmã, igualmente idosa, uma confirmação sobre a beleza de seus cabelos – se eles ainda são tão bonitos quanto as penas de um ganso. Para a personagem, a vaidade é um de seus últimos redutos de vida.)

    Ricardo Carranza
    Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2000, diretor do escritório de arquitetura e editora G&C Arquitectônica Ltda, editor da revista 5% Arquitetura + Arte e escritor. Publicações: Antologias de Concursos Nacionais – SCORTECCI, SESC DF; revista de literatura – CULT; sites de Poesia e Literatura – Zunái, Stéphanos, Germina, Cult - Ofi-cina Literária, Mallarmargens, O arquivo de Renato Suttana, Triplov. LIVROS: Poesia – publicados: Sexteto, Edição do Autor, SP, 2010; A Flor Empírica, Edição do autor, SP, 2011; Dramas, Editora G&C Arquitectônica Ltda., SP, 2012. Inéditos – Pastiche, 2017/2018; poesia... 2019. Contos – inéditos: A comédia dos erros, 2011/2018 – pré-selecionado no Prêmio Sesc de Literatura 2018; Anacronismos, 2015/2018; 7 Peças Cáusticas, 2018. Romance inédito: Craquelê, 2018/2019. Cadernos de Insônia (58): desde 2009. ARTIGOS publicados na revista 5% Arquitetura+Arte desde 2005.

    Como citar: 

    CARRANZA, Ricardo.O sonho como método literário de I a IV. Revista 5% arquitetura+arte, São Paulo, ano 13, volume 02, número 15, pp. 82.1, 82.13,  jan. jul.,2018-2023. disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/index.php/magazine/literatura-menu/182-ricardo-carranza

     

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