Espaço, corpo e cidade: o papel central da experiência no MuBE
DANRLEI SILVA FELIX DE ANDRADE
FERNANDO DINIZ MOREIRA
Resumo:
Nas últimas décadas, os museus deixaram de ser simples espaços de colecionismo de obras de arte e tornam-se locais de celebração da própria cidade onde estão locados, por vezes fazendo parte de estratégias de revitalização urbana. Frequentemente encomendados a renomados escritórios de arquitetura, os edifícios que abrigam estes grandes museus têm sido vistos como obras de arte, com forte carácter imagético, e se mostrado cada vez mais dissociados do lugar onde se inserem. Ao contrário desta tendência, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha destacou-se na produção de museus inseridos em contextos urbanos consolidados, levando em consideração as particularidades do lugar.
Adotando o Museu Brasileiro de Escultura (MuBE) em São Paulo (1986-1995) como objeto de estudo, este artigo procura explicitar, por meio de uma abordagem fenomenológica, como o arquiteto manipulou luz, material e a topografia do terreno, para despertar sensações e criar um museu que valoriza a continuidade entre os espaços aberto e público e os espaços mais introspectivos que oferecem concentração para se admirar obras de arte em seu interior, se unindo-se à cidade como um espaço-continuum e tornando-se parte integrante desta.
Introdução
Ao se tornarem mais um produto da cultura de consumo em massa, os museus deixam de ser simples espaços de colecionismo de obras de arte e tornam-se locais de celebração da própria cidade onde estão locados, além de incorporarem novos usos ao programa, como lojas, cafés e bibliotecas. Frequentemente encomendados a renomados escritórios de arquitetura que fazem destes edifícios obras de arte a serem contempladas, estes edifícios, muitas vezes, têm reforçado o carácter imagético e se mostrado cada vez mais dissociados do lugar onde se inserem. Como os museus contemporâneos podem ser equipamentos de destaque na cidade, contribuírem para a revitalização urbana de seus arredores e, ao mesmo tempo, estabelecerem uma sensível mediação com o lugar em que se inserem? Como conciliar e tirar partido dos espaços da cidade ao seu redor? Como conciliar espaços mais abertos, públicos, de encontro e celebração com espaços mais introspectivos que ofereçam concentração para se admirar obras de arte em seu interior?
Entre os arquitetos que mais tem se destacado nas últimas décadas com museus inseridos em contextos urbanos consolidados, estava Paulo Mendes da Rocha. Embora a reação da crítica aos seus projetos não tenha sido unânime, eles são fruto de estratégias projetuais caracterizadas por uma pesquisa densa da realidade, absorvida e sintetizada por meio de gestos arquitetônicos ousados e aparentemente simples.
Reconhecida internacionalmente, a obra de Paulo Mendes da Rocha frequentemente é analisada e levando em consideração as espacialidades criadas (PIÑON, 2002, p. 28), na relação entre o edifício e o lugar (SOUTO, 2010, p. 243), historiografia (ZEIN, 2000, p. 161) e a relação entre desenho e projeto (OTONDO, 2016, 2013, p. 37). No entanto, a questão da experiência em suas obras e a forma como o arquiteto manipula materiais, luz e terreno, para despertar sensações nos usuários, pouco foi estudada nessa literatura. Estes temas devem receber ainda mais atenção quando são manipulados para criar uma ambiência na qual o usuário possa desfrutar de obras de arte − particularmente esculturas, que por si sós encerram uma dimensão espacial − como é o caso do Museu Brasileiro de Escultura (MuBE), realizado na cidade de São Paulo entre 1986 e 1995. Por meio da manipulação desses três elementos (material, luz e terreno), o arquiteto cria um museu que busca articular um percurso desde uma dimensão pública constante na cidade até uma dimensão individual que favoreça a concentração e circunspecção para que o indivíduo se defronte com uma obra de arte, por meio da conexão entre cidade e edifício e entre seu espaço interno e externo.
Este artigo busca explicitar a relação entre cidade, museu, indivíduo e obras expostas no MuBE. A pesquisa toma como base teórica a fenomenologia, particularmente de autores como Christian Norberg-Schulz ([1976] 2006, p. 449), Juhani Pallasmaa (2012, p. 41), e Mohammed Reza Shirazi (2014, p. 157-159), que entendem a experiência do corpo no lugar, como o modo mais completo de perceber a dimensão sensorial da arquitetura. Para tal, foram feitas visitas, com registros das descrições das sensações e experiência do espaço do museu, além de registros fotográficos.
O artigo está dividido em duas partes. A primeira oferece uma breve apresentação do arquiteto e do MuBE, tratando de alguns condicionantes que foram essenciais para a concepção do projeto. A segunda parte apresenta a descrição fenomenológica do MuBE, auxiliados pelos fundamentos da fenomenologia, particularmente apoiados particularmente nas metodologias de Shirazi (2014) e de Pallasmaa e McCarter (2012).
MuBE – O Projeto
Paulo Mendes da Rocha foi frequentemente apontado como pertencente a uma importante geração de arquitetos que compõem a chamada Escola Paulista de Arquitetura, constituída por de arquitetos que priorizaram o uso da estrutura em concreto armado, a racionalidade da construção e da clareza da estrutura, bem como valorização do espaço interno comum, da simplicidade volumétrica e da continuidade entre interior e exterior (ZEIN, 2000, p. 39). Mendes da Rocha explorava a plasticidade do concreto como meio de permitir ao espaço um grau único de liberdade, utilizando-se dos espaços amplos e da assertividade estrutural, para conceber uma arquitetura de soluções ousadas e que conta com um grande refinamento técnico (SUBIRATS, 2012, p. 13). Em uma entrevista em 1991, Sophia Telles argumenta que a obra de Mendes da Rocha se caracterizava pela forma singular como são estabelecidas relações entre técnica e natureza, espaço e matéria, objeto e terreno (OTONDO, 2013, p. 29). Ao analisar as obras do arquiteto, pode-se perceber uma expressão que se embasa na condensação dos elementos construtivos atingindo por consequência, uma arquitetura que se reduz ao mínimo, limpa e crua (OTONDO, 2013, p. 63).
Uma de suas obras mais icônicas é o Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia – MuBE, projeto que teve sua história iniciada muito antes do primeiro traço do arquiteto. O MuBE está localizado em uma das mais nobres regiões da cidade de São Paulo, o bairro do Jardim Europa, no cruzamento da Avenida Europa com a Rua Alemanha. Antes de sequer se cogitar a presença de um museu no local, um grupo empresarial propôs a construção de um Shopping Center no terreno. Contudo, um grupo de moradores pertencentes à Sociedade dos Amigos dos Museus se opôs a tal proposta e protestou junto à prefeitura, alegando que o projeto feria o caráter residencial do bairro. Tamanha foi a pressão dos moradores, que a prefeitura doou o terreno, com a condição de que os moradores apresentassem num prazo de um ano, um projeto para o local, que atendesse a algum interesse social. Foi então que os moradores, provavelmente influenciados pela presença da família Brecheret, decidiram pela construção de um museu de esculturas (PIÑÓN, 2002, p. 27). Tendo isso em mente, os moradores convidaram alguns dos principais arquitetos de São Paulo na época, para um concurso fechado, no qual Paulo Mendes da Rocha saiu-se vencedor, com um projeto de requinte técnico e estrutural.
Partindo da ideia de que as “esculturas gostam muito de estar, a maioria delas, ao ar livre” (PIÑÓN, 2002, p. 28), o arquiteto pensou em um museu que pudesse expor obras tanto ao ar livre, em ambiente externo, quanto no espaço interno. Como o próprio Mendes da Rocha afirma em entrevista, pareceu bastante oportuno, levando em consideração os condicionantes topográficos do terreno, fazer um museu em diferentes níveis, já que há uma diferença de mais de 4 metros entre a cota mais alta do terreno (FRACALOSSI, 2015). O projeto foi pensado a partir da topografia e da condição urbana do lote, com um piso térreo que estaria no mesmo nível da Av. Europa, e um piso subsolo, que aproveitaria o nível mais baixo da Rua Alemanha. Dessa forma, o arquiteto buscava fazer uma integração entre o espaço do museu e a cidade, criando uma continuidade, com o edifício ao nível da rua tanto na cota mais alta, quanto na mais baixa (PIÑÓN, 2002, p. 28). Para ele, não deveríamos pensar em espaços públicos e privados. O único espaço verdadeiramente privado seria o pensamento humano e como mesmo esse queremos tornar público, a arquitetura deveria refletir isso (MENDES DA ROCHA, 2012, p. 91).
No MuBE há uma continuidade do espaço público para o espaço mais reservado e individual. A céu aberto tudo o que se vê é uma imensa esplanada capaz de receber obras imensas, em diferentes níveis, e o edifício do museu em si, discretamente rebaixado, tomando uma posição em segundo plano, com relação à grande esplanada. Segundo o arquiteto havia a necessidade de ancorar aquele museu, criar um marco, um lugar. Para tal, resolveu criar uma grande coberta, com dimensões aproximadas de 12 metros de largura, por 60 metros de comprimento, com o objetivo de incorporar as mesmas funções que historicamente foram atribuídas aos coretos, e pergolados, uma “pedra no céu” como relata em uma entrevista na Revista Projeto em 1995. Considerando as necessidades do programa do subsolo, viu-se que a melhor orientação para ela, seria de modo perpendicular à Av. Europa (PIÑÓN, 2002, p. 28).
Ainda no nível térreo, além da esplanada de exposição de obras permanentes e transitórias, há um teatro ao ar livre, dois espelhos d’água e um jardim, projetado por Burle Marx, com bromélias, um arvoredo e algumas flores características da região (MENDES DA ROCHA, 2000, p. 86). O jardim atua como um contraponto à esplanada de concreto, que domina a área central. No entanto, como já mencionado, o museu também dispõe de um piso no subsolo, responsável por abrigar tanto as exposições internas, transitórias, com obras de menor porte, como as áreas administrativas e de serviço, além de um auditório e um café, que tem ligação direta com a Rua Alemanha. Por meio da valorização e manipulação da topografia, o arquiteto atende tanto a questões ligadas à cidade, como a já citada continuidade entre espaço público e privado, mas também resolve questões do próprio programa de um museu, como o isolamento acústico e térmico da área de exposição das obras exibidas no ambiente interno.
O MuBE marcou a carreira de Paulo Mendes da Rocha, ao resumir todos os elementos a uma forma essencial, pura e tecnicamente ousada, que explora as possibilidades da tecnologia do concreto.. O arquiteto cria um lugar que, por meio da experiencia do percurso, permite diferentes formas de se experenciar as atividades que ali são desempenhadas.
Espaço, corpo e experiência no MuBE
Para o entendimento do edifício do MuBE e de sua relação com a cidade, recorreu-se a uma abordagem proveniente da fenomenologia da arquitetura, particularmente em autores como Christian Norberg-Schulz e Juhani Pallasmaa. Norberg-Schulz contribuiu com o conceito de genius loci, a ideia de um espírito próprio de cada lugar e de espaço e caráter. Apoiado nas reflexões de Merleau-Ponty sobre a experienciação do mundo por meio do corpo, Juhani Pallasmaa elabora uma crítica ao empobrecimento da arquitetura contemporânea, indicando que a experiencia real da arquitetura vem sendo negligenciada, em favor de uma arquitetura mais preocupada com o jogo de formas e imagens. Para ele, a arquitetura deve atender aos princípios da existência humana e trazer consigo o apelo à percepção, baseada na experiencia do corpo, de maneira multissensorial (PALLASMAA, 2005, p. 41). Baseado nestes e em outros autores contemporâneos, o crítico Mohamed Reza Shirazi propôs um método de descrição fenomenológica, baseado na experiência do usuário por meio de um percurso na obra quando os fenômenos são descritos da maneira como se apresentam, que revelou-se apropriado para a nossa pesquisa (SHIRAZI, 2014, p. 157-159).
Como já mencionado, o MuBE está localizado em um importante cruzamento no Jardim Europa, bairro que possui ruas bastante sinuosas e arborizadas (figura 01), com um traçado que procura se adequar aos condicionantes topográficos, e apresenta uma atmosfera tranquila que hoje parece funcionar como um pulmão para a cidade.
Ao visitar o museu, logo na chegada, procuramos nos desligar de qualquer conhecimento prévio acerca do projeto, algo que Shirazi (2014, p. 151-156), baseado na epoché de Husserl, conceitua como presuppositionlessness, uma recusa a concepções prévias, com a finalidade de capturar os fenômenos da forma como eles se apresentam. Como a esquina entre Avenida Europa e a Rua Alemanha é o ponto mais movimentado em relação ao tráfego de automóveis e pedestres, pareceu-nos natural iniciar a descrição fenomenológica a partir desse ponto (figura 2). Então, ao nos aproximarmos a partir da esquina oposta, o museu vai se revelando por meio de uma sucessão de camadas no horizonte, que passo a passo vão sendo percorridas com o olhar.
Ainda na esquina oposta, vemos uma mureta que, seguindo o alinhamento das palmeiras, define um limite entre o que está dentro e fora do conjunto e que parece embasar uma imponente viga suspensa ao fundo. Sentimo-nos atraídos a ir àquele lugar, há a criação de uma direção existencial, embora não percebamos qualquer entrada próxima (figura 3/01). Então, decidimos explorar o caminho da Rua Alemanha, de onde o edifício não chama tanta atenção por seu tamanho, podendo até passar despercebido, escondido por entre as árvores (figura 3/02). Porém, a medida em que caminhamos em direção ao edifício, ele vai se revelando e parece crescer gradualmente. O que antes víamos como um paredão maciço, se transforma num imenso vazio, com uma enorme coberta de concreto que parece flutuar, desafiando a gravidade. Através da experiência do caminhar e observar, a espacialidade do edifício vai se configurando e revelando. Ao olhar aquele elemento em sua totalidade, percebemo-nos imersos em dois sentimentos aparentemente opostos que conjugam a leveza da peça com a certa inquietação diante de um frágil equilíbrio (figura 3/03). Quando recuperamos o fôlego, temos nosso olhar direcionado por duas paredes que se estendem abaixo daquela coberta e um piso de pedras brancas irregulares, direcionando-os para um grupo de pessoas que sob ela se abrigam, protegidas à sombra, o que nos faz ter vontade de ir até lá, para também nos sentirmos abrigados (figura 3/04).
Olhamos à esquerda e é impossível não notar o espelho d’agua ao nosso lado que se estende até quase se perder de vista. Através do contraste a água escura e as pedras claras do piso, o espelho d’água apresenta-se como uma subtração ao plano por onde caminhamos ao mesmo tempo que parece criar uma superfície que faz a empena que sustenta a grande coberta parecer não tocar o chão, mas se perder na escuridão da água (figura 3/05). Nessa mistura de contrastes, tons de vermelho (carpas coloridas) se somam ao cinza do concreto e das pedras, ao verde das árvores e ao preto da água. Segundo Steven Holl, a água é uma das lentes fenomênicas, que tem o poder de reunir os elementos ao seu redor, por meio dos reflexos e da refração dos raios de luz (HOLL, PALLASMAA, PÉREZ-GOMÉZ, 2006, p.80-81). De fato, o espelho d’água parece articular estas dimensões (a coberta de concreto, a copa das árvores e o céu) provendo uma experiência multissensorial única, da qual ficamos imersos, resistindo a subir o caminho de pedras ao seu lado (figura 3/06).
Balizados pela empena de concreto e pelo guarda-corpo à direita e pelo arvoredo à esquerda, o caminho reto e bem definido da suave rampa nos direciona a um ponto mais alto (figura 4/ 07). A um determinado ponto, após a empena de concreto, vão se descortinando coisas novas que não eram visíveis: um campo de fundo composto pelas esculturas, um jardim e uma grande esplanada (figura 4/ 08). Então, chegamos ao fim do caminho de pedras e percebemos a grande esplanada se abrir e organizar os elementos, estabelecendo um lugar, abrindo um mundo e reunindo todo o entorno, como a famosa ponte discutida por Heidegger em Construir, Morar e Pensar (HEIDEGGER, ([1954], 1971, p.150-151). A esplanada, junto ao jardim, às esculturas e à coberta, cria um espaço fluido, contínuo, mas que ao mesmo tempo reserva certas particularidades, como um microcosmos. Nesse momento, o espaço interno do museu parece ficar em segundo plano, nada parece ter tanta importância quanto aquele lugar que mais parece uma grande praça.
Atravessamos uma ponte que estabelece um limite entre o dentro e fora da esplanada (figura 4/ 09), saindo do piso de pedras portuguesas e adentrando um piso de concreto, com linhas bem definidas e regulares que criam um padrão, uma série de quadrados no chão que se perdem à medida que se afastam de nós, reforçando a noção de profundidade, estabelecendo um chão para toda a praça, como nas pinturas renascentistas de cenas urbanas. Enquanto as linhas que seguem em frente direcionam nosso olhar para a Avenida Europa, as linhas mais horizontais direcionam para dois lugares bem distintos. À esquerda um jardim com árvores e esculturas, no qual o verde e a sombra prevalecem, e à direita um espaço aberto dominado pelo concreto e pelas formas geométricas, cuja aridez é atenuada por uma sombra, como um tipo de abrigo, que nos atrai devido à uma diferença de piso que parece esconder algo (figura 4/ 10).
Sob a sombra da coberta, os limites do piso e a coberta direcionam nosso olhar para a rua, vemos o movimento das pessoas na rua, entrando e saindo do museu, ouvimos o barulho dos automóveis e do farfalhar das árvores que balançam com o vento suave. Aqui, a arquitetura faz parte de uma experiência multissensorial, que nos faz sentir de volta à cidade (figura 4/ 11). Quando olhamos para cima, a grande coberta, que está quase ao alcance de nossas mãos, guia nosso olhar para sua outra extremidade. A coberta e a sombra que ela projeta conferem um senso de direção ao nosso olhar, que é intensificado na medida em que as diferenças de nível criam a ilusão de uma escada que guia até a outra extremidade. De onde estamos percebemos que essas diferenças de nível estabelecem diferentes lugares para as pessoas, que podem conversar, namorar, meditar, contemplar, repousar, dançar, se exercitar, e até comprar e vender em certos dias, enfim, tudo o que se pode fazer em um espaço público (figura 4/ 12).
A partir deste ponto, as linhas do piso e a da coberta direcionam nosso olhar para o contraste entre o construído, a escadaria e o piso de concreto cuja precisão de artefatos humanos é realçado pela iluminação, e o natural, a porção verde e sombreada ao fundo que abriga esculturas (figura 05/13). À medida que caminhamos para o espaço verde, ouvimos algumas placas do piso se movimentarem com nossos passos, é só então lembramos que não estamos andando sobre o solo em si, mas sobre uma laje que abriga os espaços internos do museu.
Junto às árvores vemos duas esculturas, um labirinto de tijolos e um empilhamento de pedras. A primeira desperta nossa curiosidade não pela sua forma, mas pelo som de crianças brincando que vem de lá, o que nos fez seguir até lá (figura 05/14). Tendo passado pela escultura de tijolos, percebemos que, de fato, estamos em um lugar diferente daquela grande esplanada, ou do abrigo da grande coberta. Aqui a experiência multissensorial é aguçada mais uma vez, particularmente pela ativação de nossa visão periférica (PALLASMAA, 2005, p.65, 2014, p.38-39). É mais frio, mais sombreado, o vento corre mais forte, e ouvimos o farfalhar da copa das árvores. O piso verde e irregular daqui, contrasta com o cinza e geométrico de lá, reforçando a noção de lugares distintos. Longe de ser um resto de terreno no qual se implantou um jardim, este espaço funciona como um contraponto necessário à grande coberta e esplanada de concreto, um é fundamental para a existência do outro (figura 05/15). Os livros e revistas de arquitetura, devido à ênfase em seu objeto primordial, geralmente exibem plantas de edifícios retiradas de seu contexto e entorno imediato, mas estes são fundamentais para o entendimento de um edifício, particularmente um como o MuBE.
Aproximamo-nos da escultura que consiste em um empilhamento de pedras, uma grande massa apoiada em poucos pontos, o que nos intriga pela aparência de um frágil equilíbrio e, também, por ali encontrarmos referências à grande coberta (figura 05/16). Passamos aquelas esculturas e seguimos por um caminho mais sinuoso, definido pelas árvores locadas à sua margem e pelas placas concreto. O caminho nos conduz para outras esculturas mais a frente reforçam ainda mais essa noção de sentido a seguir, de uma direção existencial (figura 05/17). Seguimos o caminho e ao virar para a direita, duas esculturas emolduram a paisagem, destacando o grande e leve volume que se apresenta como pano de fundo, que desperta nosso desejo de estar lá, ao abrigo da coberta, que volta a ser protagonista (figura 05/18).
Agora, de volta ao abrigo, vemo-nos no lado oposto ponto 12 do trajeto, mas a diferença dos níveis parece ser mais aguda. Em parte isso se dá, devido a marcante parede inclinada da entrada do museu, que parece querer tocar a plataforma onde estou (figura 06/ 19). Ao nosso redor percebemos o espelho d’agua que, embora apareça de maneira discreta, chama bastante nossa atenção por seu contraste com aquele piso rígido e cinza de concreto. O verde da água cria uma transição entre o chão e a copa das árvores, que recebe um contraponto, uma escultura, cinza, que age como um ponto focal nessa composição, reunindo em si, todo o seu entorno, como na já mencionada ponte de Heidegger. (figura 06/ 20).
Ao chegarmos perto do espelho d’agua, vemos as copas das árvores e o céu refletidos nele. Ao seu lado há um caminho bem definido, delimitado verticalmente pelo espelho d’agua e por um canteiro com palmeiras, que parecem seguir as linhas das placas de concreto do piso. O caminho vai escavando a terra à medida em que vai se prolongando. Sentimo-nos convidados a percorrê-lo, curiosos pelo que há por trás do espelho d’agua (figura 06/ 21). Concluímos a primeira parte do caminho e, ao nos virarmos, vemos a coberta em toda sua riqueza tectônica, apoiada em duas grandes empenas, abraçando o volume que se inicia com a quina do espelho d’agua e se estende até perder de vista. Por meio da sua inserção no terreno, é nítida a relevância da grande coberta para se estabelecer aquele lugar (figura 06/ 22). Aqui, o caminho segue e à esquerda onde encontramos uma escada, de forma geométrica bem peculiar, que faz um contraponto à rigidez das linhas retas onipresentes no museu, e nos leva a um nível mais baixo. Descendo a escada, primeiro sentimo-nos espremidos por suas paredes, mas logo após elas se abrem, reforçando a ideia da chegada em um novo lugar, em um café, que já despertava nosso olfato (figura 06/ 23). Atravessamos o café e uma sala contígua, quando teto, piso e paredes parecem emoldurar um pequeno trecho da coberta, com algumas árvores e esculturas no campo de fundo. Desse ponto também percebemos uma rampa que supomos levar ao nível intermediário da esplanada (figura 06/ 24), então caminhamos para investigar.
Olhamos à esquerda e vemos um caminho de pedras, levemente inclinado e delimitado por duas paredes, que não oferece outras possibilidades que não seja seguir em frente para a entrada principal (figura 07/25). Entretanto, o cansaço nos fez querer descansar e vamos para o abrigo da coberta. Enquanto contemplávamos o lugar, de maneira quase que automática, começamos a desenhar e por meio dele, fomos percebendo as diferentes camadas da paisagem, uma pausa necessária para a compreensão desta experiência espacial (figura 07/26). Enquanto isso, notamos um guarda-corpo que além de impor um limite, também indica uma rota alternativa que decidimos seguir. De fato, há uma rota alternativa, estreita, com uma janela escura à frente, que conecta o lugar onde estamos a outro, interno, e já à esquerda se localiza a entrada da parte interna do museu, o que nos foi compensador (figura 07/27). Chegando na entrada, percebemos que a sombra aqui é mais densa e que se não fossem as lâmpadas, estaríamos na completa escuridão (figura 07/28). Olhamos para trás e tenho a sensação de estar numa caverna ou em um túnel. Há luz lá fora, mas ela vai esmaecendo de maneira uniforme no concreto e irregular, quebrada, no piso de pedra, até que finda na sombra, gerando assim um belo diálogo entre, luz, sombra e materiais, algo muito ressaltado nos escritos de Steven Holl (2006, p.63-64) (figura 07/29).
Ao entrar na área de exposições internas, nossos olhares são atraídos por uma marcação em concreto, no teto, até um painel branco que se estende para a esquerda e para a direita e parece conectar aquele lugar, em todas as direções. De certo modo, apontando aquilo a que devemos seguir, porém, um guarda-corpo de metal sinaliza o desnível que há entre o lugar onde estamos e a exposição de fato, destacando o limite criado pelas diferentes cotas do piso (figura 07/30). Seguimos à esquerda – único caminho possível – e encontramos uma sala onde a função do estar e da exposição parecem se misturar, criando uma ambiência particular. Nela a luz entra de maneira indireta, refletida pela água e pelo concreto. A conexão com o exterior se dá através das grandes janelas que permitem entrar a luz e o som da água, que trazem consigo um ar sereno e a sensação de suspensão do tempo (figura 07/31).
Retornamos ao caminho da exposição, deixando aquele lugar quase externo e seguimos por um caminho onde não se vê mais o exterior, mas que não nos faz sentir confinados, por suas amplas proporções. As linhas do teto guiam a direção a ser seguida,. Aqui, a iluminação cria um limite entre o espaço da obra e do espectador. Junto às obras, a luz é fria, já no espaço de trânsito e contemplação a iluminação é mais quente e sua disposição linear reforçar a ideia de seguir em frente (figura 08/32). Após alguns passos, percebemos um grande recanto à direita do caminho principal, um grande vazio, ocupado por obras parecem demandar um tempo maior de contemplação, bem como a observação por mais ângulos. A apreciação de uma escultura envolve também um espaço que a ela se vincula e que possibilita um olhar dinâmico, aproximativo, e em constante movimento do próprio apreciador.
Neste ponto, teto e piso parecem se espelhar, unidos por paredes brancas que soltam as duas superfícies cinzas de concreto, pelo contraste, mas que as une no aspecto físico da construção (figura 08/33). Aqui, sem perceber nos sentamos novamente para descansar e, assim podemos observar as pessoas passarem pelo caminho principal, vindo para onde estávamos, parecendo também procurar ali um local de descanso, atestando que esta espacialidade estimular o caminhar, observar, parar, descansar e tantas outras ações.. Por entre as paredes brancas que envolvem o ambiente, percebemos que há a entrada de luz natural e a curiosidade nos impele para descobrir o que há adiante (figura 08/34). Então, percebemos que a luz estava entrando no ambiente através de uma janela que, entre duas paredes, se estendendo do piso ao teto. (figura 08/35). Logo após essa janela, abre-se um grande salão, com várias obras expostas. Aqui as paredes seguem o mesmo padrão da ala anterior, uma branca com obras expostas nela e acompanhada por uma iluminação fria, e uma parede de concreto, sem obras e com iluminação quente. Diferente do piso liso e uniforme, o teto apresenta uma repetição de vigas paralelas que se repetem até o fim do salão, exceto por um pequeno trecho onde há quatro exaustores de ar brancos que acabam estabelecendo um lugar específico em todo esse espaço. No entanto, aqui, o que mais chama nossa atenção é a luz azul que vem do fundo do salão, acompanhada por um barulho de máquinas. Os estímulos visual e sonoro atraem nossa atenção, sem o uso de qualquer limite físico, cria-se uma direcionalidade, uma noção de aqui e ali (figura 08/36). A luz azul e o som da obra Zero Hidrográfico de Gisela Mota e Leandro Lima criam uma ambiência suspensa da realidade e do tempo, um lugar único dentro de um microcosmos, abraçado por um nível mais alto que o envolve e se inicia em uma rampa a esquerda. Aqui a luz altera a materialidade das superfícies de concreto, pois a luz é também um material, como nos lembra Steven Holl. E essa sobreposição de materiais, contraste de claros e escuros, emolduram ao fundo uma pequena entrada de luz natural, uma conexão com o mundo exterior (figura 08/37).
Ao caminharmos, percebemos que o que é entrada para a luz, é também saída. No entanto, o que mais nos chama a atenção aqui, é a lembrança que a esquadria da saída nos traz do espelho d’agua da Avenida Europa (figura 06/22) e da entrada da Rua Alemanha (figura 03/05), sinalizando que a experiencia do museu começa e termina da mesma forma, com a mesma forma (figura 8/38). Ela cria um ambiente de transição entre a luz e a sombra, interno e externo, aqui e ali, ambiente esse que se diferencia ainda mais pela mudança do material do piso, que agora passa a ser uma tela metálica. Nele, vemos novamente o caminho que antes desistimos de seguir por conta do cansaço (figura 06/25), que se antes nos guiava para a entrada do museu, agora nos guia para sua saída (figura 08/39).
Considerações Finais
O MuBE de Paulo Mendes da Rocha atende à demanda contemporânea por museus que possam e se permitam ser mais que espaços de coleção de obras de arte, se tornando parte integrante da cidade. Distanciando-se de uma abordagem meramente imagética e dissociada do lugar, Mendes da Rocha estabeleceu uma relação sensível com o contexto urbano onde o museu está inserido, integrando-se de maneira fluida e contínua com a cidade. Isto foi atingido por meio da percepção das condições urbanas, entendendo o edifício como parte integrante de um sistema de relações que vão desde a relação macro entre edifício e cidade, até as relações micro, como a mediação entre espaços de convivência ao ar livre e espaços internos de contemplação.
A exploração da topografia do terreno se mostrou essencial para a relação entre o museu e seu entorno, permitindo que o edifício sempre esteja ao nível da rua. Materiais, luz, sombra e tectônica também assumem um papel central na forma como o edifício é experienciado, criando visadas que estimulam o percurso do indivíduo por todo o museu, incluindo seus ambientes externos, que suscitam a celebração do coletivo, abrigando atividades diversas sem abdicar, entretanto, de espaços mais introspectivos, nos quais as sombras e a escala acentuam a diferenciação dos usos, criando assim um museu que estimula determinadas sensações, a depender da intenção de cada lugar. valorizando assim, a vocação pública deste tipo de edifício.
Por meio de uma interpretação fenomenológica, acreditamos ter ficado evidente que o MuBE foi gestado a partir da interpretação da paisagem como como um sistema de relações entre elementos naturais e construídos e pela manipulação do terreno, percursos, materiais e luz. Esta experiência nos lembra David Leatherbarrow (2004), que busca interpretar a arquitetura e o paisagismo como “artes topográficas”, ou seja, a arte de trabalhar com a topografia, por ele entendida em um sentido amplo (natureza, sítio, arquitetura, cidade e cultura). De fato, a experiência do MuBE nos leva a repensar o cisma fictício que existe entre paisagismo e arquitetura e que essas disciplinas precisam uma da outra para atingir um significado cultural mais amplo.
Referências
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Mini currículos
Danrlei Silva Felix de Andrade e arquiteto graduado pela Universidade Federal de Pernambuco (2020)
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Link Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1447635910827696
Fernando Diniz Moreira é arquiteto pela Universidade Federal de Pernambuco (1989) e historiador pela Universidade Católica de Pernambuco (1991). É mestre em Desenvolvimento Urbano pela UFPE (1994) e em arquitetura pela University of Pennsylvania (2001) e Ph.D. em Arquitetura pela University of Pennsylvania (2004). Atualmente é professor associado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pesquisador nível 2 do CNPq e assessor ad hoc da Capes, do CNPq, da Fapesp e do Arts & Humanities Research Council-UK. Sua área de interesse reside em teoria e história da arquitetura, história do urbanismo e conservação. Sobre estes assuntos tem cerca 70 artigos, livros e capítulos de livros publicados em mais de dez países. Tem também experiência profissional em conservação urbana e arquitetônica, tendo participado das equipes do Plano Metrópóle 2010 (1998), Plano Diretor do Conjunto Franciscano de Olinda (2005-06) da Casa Torquato de Castro (2010) e do Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães (2011).
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Link Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6641935263631117
Como citar:
ANDRADE, Danrlei Silva Felix de; MOREIRA, Fernando. Espaço, corpo e cidade: o papel central da experiência no MuBE. 5% Arquitetura + Arte, São Paulo, ano 16, v. 01, n.22, e188, p. 1-20, jul. dez/2021. Disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/index.php/periodico/ciencias-sociais-aplicadas/381-espaco-corpo-e-cidade-o-papel-central-da-experiencia-no-mube
Submetido em: 2021-04-08
Aprovado em: 2021-06-10
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