Moradas Infantis de Canuanã: diálogos entre a técnica e a natureza a partir da leitura de processo de projeto participativo
CAMILA PALMIERE
CAIO CASTELO BRANCO
FRANCISCO ROCHA
CAMILA BRANCO
RAFAEL ANTONIO CUNHA PERRONE
Resumo
O presente artigo estuda o projeto das novas moradas da escola-fazenda de Canuanã, localizada na região do Araguaia, interior do Tocantins, compreendendo o processo de projeto participativo como método diferencial durante a concepção arquitetônica das novas moradas, a partir do momento que projetistas e sociedade local são aproximados com o objetivo de solucionar problemas comuns presentes no meio social, assumindo o papel ativo da comunidade na tomada de decisões durante a elaboração do projeto da nova escola.
O trabalho tem como questões norteadoras: (i) por que a proposta para as novas moradas de Canuanã merecem uma atenção que vai além da análise sobre sua qualidade construtiva? (ii) O que motivou a equipe de projeto a proporcionar tanta qualidade construtiva, considerando o fato de que as novas moradas se situam em uma região remota? (iii) Quais foram as pessoas envolvidas no processo de projeto para o bom resultado da obra? (iv) E como a técnica construtiva possibilitou materializar todos os elementos estudados durante o processo de compreensão da região do Araguaia, transferindo humanização à obra? O objetivo da pesquisa se baseia na busca pelo aprofundamento no projeto da escola-fazenda de Canuanã vinculada à compreensão sobre como essa porção do território brasileiro é tão rico em cultura e diversidade e, ao mesmo tempo, tão desconhecido por grande parte da população do país.
Introdução
A escola de Canuanã “Doutor Dante Pazzanese”, gerenciada pela Fundação Bradesco, está localizada no município de Formoso do Araguaia ao sul do estado do Tocantins em um ambiente remoto e afastado dos centros urbanos, com cerca de 60 km da cidade de Formoso do Araguaia. A escola-fazenda, fundada em 1973, funciona em regime de internato desde sua criação, tanto os estudantes quanto os funcionários, com seus familiares, residem na escola.
As escolas-fazendas são locais de ensino orientadas pelo princípio “aprender a fazer e fazer para aprender”, atividades que dão oportunidade aos alunos a vivenciarem as situações cotidianas e problemas vinculados à sua atividade profissional. A escola-fazenda de Canuanã possui esse sistema de escola técnica integrada às atividades de agricultura que permite aos jovens o enriquecimento de seu processo de aprendizagem, aliando o conhecimento teórico com a atividade prática. Com o intuito de fomentar o acesso à educação e qualificar essas atividades de ensino, a nova proposta para as moradas-infantis de Canuanã nasceu justamente apoiada na preocupação em transformar a escola em uma moradia para os alunos da Fundação Bradesco, evitando os grandes deslocamentos enfrentados por eles diariamente. Isto se realizou por meio do objetivo de entregar uma proposta de ensino em regime de internato por intermédio de uma construção capaz de transmitir aos usuários o “pertencimento”, ou seja, a sensação de continuarem se sentindo membros de uma cultura que expressa os mesmos valores, tradições, princípios e aspirações presentes na sociedade indígena.
A região é habitada por aldeias indígenas de etnia Ava-Canoeiros e Javaé e também por pequenos agricultores resideneas na Ilha do Bananal, assentados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Assim, devido à proximidade com a escola, 90% do total de alunos matriculados são integrantes dessas comunidades. Como levantado por Barros, a relação dos alunos com a Fundação demonstra que:
As escolas constituem uma referência sociocultural nas regiões em que se encontram. Essas comunidades vêem na Fundação Bradesco possibilidades de ampliar horizontes de trabalho e realizações. (BARROS, 2012, p. 67).
Metodologia do Processo de Projeto Participativo
A experiência da nova proposta da escola-fazenda de Canuanã se resume em um modelo de ideias compartilhadas que une o antigo programa à incorporação de novas ideias da comunidade do Araguaia, em especial com a participação das crianças na formação de um universo de hipóteses e diferentes perspectivas, tendo como ferramenta para alcançar desenhos com resoluções espaciais diferentes, propiciando a noção de pertencimento e inclusão. A concepção de projeto colaborativo de Canuanã, permitiu que as decisões fossem divididas não somente com os clientes como também com a comunidade local e familiares, gerando uma experiência de trabalho inovadora apoiada em encontros entre profissionais e moradores da região do Araguaia em um modelo de opiniões compartilhadas, sem barreiras e hierarquias. Esta experiência que originou novos conceitos e atividades, possibilitou identificar necessidades reais as quais foram solucionadas, em projeto, para o bom sucesso da obra a ser entregue para toda a comunidade do Araguaia.
O projeto das novas moradas de Canuanã foi orientado por um instituto que promove a inclusão social, conhecido como “A Gente Transforma”, liderado por Marcelo Rosenbaum. Este projeto permite um mergulho profundo nos costumes de diferentes povos brasileiros e a exposição desse conhecimento por meio da arquitetura e do design. Tais premissas nortearam a recriação de conceitos da nova Canuanã, com o objetivo de construir um futuro sólido, sob novas perspectivas de inovação e sustentabilidade.
Em Canuanã, 70 alunos participaram do processo de co-criação da escola. Foram separados 5 a 6 grupos com 10 crianças e a cada equipe foram entregues atividades de reflexão sobre como seria para eles o “Canuanã Minha Casa”. Assim, os grupos traziam suas necessidades, materializando seus desejos e ideias em forma de maquete, construindo modelos sobre como seria essa nova casa. A ideia de explorar os desejos e criatividade dos alunos foi elaborada por Marcelo Rosenbaum em conjunto com a equipe de arquitetura do escritório Aleph Zero, exercício que permitiu aos alunos a liberdade de expressar suas ideias e desenhar a disposição dos ambientes como bem entendiam e se identificavam. A partir disso, foram desenvolvidos projetos com diversas geometrias e tipologias, plantas em estrela, plantas em U, e até o surgimento de projetos com configuração espacial generosa que chegavam ao desenho de um pátio central, onde todas essas atividades foram ferramentas para propiciar a noção de pertencimento e inclusão em um processo participativo.
A nova concepção das moradas-infantis de Canuanã nasceu através da aproximação entre projetistas e comunidade, solucionando os problemas comuns da sociedade local e oferecendo aos alunos a oportunidade de exercitarem seu imaginário tendo como referência o universo da sua própria cultura. Foi possível questionar se tinha como trazer o rio para dentro da “casa”, imaginações que foram acolhidas pela arquitetura, especialmente com o auxílio das maquetes por eles construídas. Com isso, as crianças criaram autonomia o suficiente para dizer o que queriam a partir das bases de conhecimento adquiridas ao longo do convívio com os mais velhos. Isso se tornou mais claro com o poder de opinião que elas exerceram quando questionadas sobre como enxergavam o "Canuanã Minha Casa”.
A Escola-Fazenda Canuanã
Canuanã foi capaz de criar experiências com significado baseado no entendimento de como a comunidade local percebe o valor do ambiente utilizado por ela mesma. Para isso foi necessário contemplar diferentes pontos de vista, checando ideias inovadoras presentes dentro de cada um dos alunos, sendo esse o caminho para um bom resultado da construção a ser entregue, ou seja, foi justamente ouvir os usuários que estavam dentro do contexto em questão, pessoas que compartilhavam do mesmo universo referencial em conjunto com a equipe de projeto, vivenciando uma experiência colaborativa, que possibilitou a soma de conhecimento entre as duas partes. O profundo conhecimento do lugar contribuiu para o aprimoramento arquitetônico e qualidade das atividades da escola-fazenda. Além de demostrar uma bela qualidade construtiva, as novas moradas também demostraram a seriedade da Fundação Bradesco e seu respeito com relação ao acesso à educação no país.
Aspectos Construtivos
Desde a fundação da escola os problemas de acesso foram significativos devido à precária infraestrutura aliada às restrições dos orgãos de proteção ao índio (FUNAI) e meio ambiente (IBAMA). Tendo em vista essas dificuldades, a fundação optou pela construção de uma proposta em modelo de internato, a fim de facilitar o acesso à educação e evitar os extensos deslocamentos enfrentados diariamente pelos estudantes até a escola-fazenda. Além disso, também existia o desafio de superar o distanciamento e períodos de ausência entre os alunos e suas famílias, sendo este compreendido como um desafio a ser solucionado pela estratégia de projeto, a fim de proporcionar um espaço humanista e de pertencimento que pudesse passar para as crianças o sentimento de um lugar acolhedor e ao mesmo tempo interativo.
Para isso, a equipe de projeto estaria responsável pela missão de lançar um novo centro de referência e moradia orientado por premissas conceituais que tivessem como norte a preocupação com a relação entre edifício e espaço circundante. De fato, lançar uma solução convencional poderia ser mais barata, porém a entrega social da construção não teria o mesmo efeito caso se segue o modelo de uma proposta padrão ou concepção projetual tradicional. Não seria possível recriar o projeto sem levar em consideração as questões sociais, ambientais e culturais fortemente presentes na região do Araguaia. O desafio estaria justamente direcionado para o desenvolvimento de uma metodologia de conhecimento sobre a essência do lugar, que pudesse ser cuidadosamente transferida para a arquitetura em um modelo de construção antes jamais visto no território do “Brasil Profundo”.
Como relata o arquiteto Gustavo Utrabo, membro da equipe Aleph Zero, outro ponto a ser superado com relação ao difícil acesso à fazenda, e que se tornou uma das maiores dificuldades técnicas da obra, foi o transporte dos materiais até o local que pela localização demoravam para chegar. Como resposta a isso, os elementos construtivos, como vigas e pilares que compõem a grande estrutura em madeira laminada colada, foram pré-fabricados fora do canteiro de obras, transportados e montados no local definitivo.
Com isso, essa montagem e precisão técnica aproximou o processo de construção a um conhecimento prático sobre a montagem, traçando uma analogia à cultura da região movida ao artesanato e à construção manual das casas em taipa e palha. Essa prática dos povos locais, muito valorizada pelos arquitetos, aplicada conforme o contexto em questão, foi bem recebida pela comunidade local, diferente do processo de construção tradicional.
Como mencionado anteriormente, a logística de entrega e transporte dos materiais impactou diretamente nas soluções de engenharia determinadas para o planejamento da construção. Primeiramente, foi necessário realizar um estudo sobre as condições climáticas encontradas na região, pois a região possuí um período chuvoso que se estende por 6 meses durante o ano, o que determinou o escopo de tempo para a construção das fundações e cobertura. Além disso, o clima seco aliado à problemática da distância também se tornou um fator de pesquisa para a equipe de engenharia propor soluções pontuais e precisas.
Inclusive, o fato de a região dispor de uma usina de concreto situada somente à 150 quilômetros de distância, foi adicionado um estudo sobre os aditivos a serem utilizados no concreto, a fim de vencer um percurso de 2 horas entre a usina e a obra. Portanto, como solução foi necessária a adição de gelo no caminhão betoneira para que, ao chegar na obra, o concreto estivesse em condições de ser bombeado.
Organização Espacial
As novas moradas-infantis foram organizadas em duas vilas com separação entre gêneros, masculino e feminino. Essa organização apoiou-se na premissa de agregar uma essência a todo o complexo existente e na intenção de apresentar o centro de referência como um espaço com o significado de lar, ultrapassando seu status de somente um ambiente de ensino.
A planta recebeu um formato retangular marcado por três grandes pátios de mesma hierarquia, projetados com o intuito de estreitar a comunicação, promover encontros e ampliar as relações sociais. Ao redor das praças foram distribuídas em planta: 9 lâminas com 5 dormitórios, somando ao todo 45 unidades de descanso para 6 alunos, de 13 a 18 anos cada, equipado com espaços de armazenamento, banheiros, chuveiros e lavanderia. O dimensionamento de alunos por unidade foi realizado com a intenção de melhorar o desempenho escolar e a qualidade de vida das crianças (e dos jovens). Próximos aos blocos de dormitórios estão os espaços de convívio multiuso como sala de TV, espaço para leitura, varandas, pátios, redários, entre outros. Como descrito pela equipe de projeto, além de abrigar um maior número de pessoas, as novas vilas pretendem aumentar a autoestima das crianças por meio da utilização de técnicas construtivas locais, criando uma ponte entre as técnicas vernaculares e um novo modelo de habitação sustentável (ROSENBAUM, UTRABO, p.5).
A partir do térreo foi lançada uma malha de 5.90 x 5.90 m, uma paliçada estrutural erguida por meio de pilotis em madeira laminada colada possibilitando a livre transição dos usuários pelo pavimento e atenção dada ao entorno. O pavimento superior recebeu espaços multiuso com mobiliário flexível, como sala de TV, sala de estudos e mirantes para promover contemplação da paisagem natural, reforçando também o diálogo com os pátios de encontro. A definição das áreas para a implementação das novas moradas foi guiada por uma estratégia que tinha como finalidade a ideia de promover a futura expansão da fazenda e crescimento orgânico.
Com o objetivo de fomentar as relações humanas a partir da aproximação e valorização das relações sociais, a disposição espacial das moradas recebeu pátios internos em um modelo de desenho caracterizado por praças com vegetação ladeadas pelos serviços de apoio aos estudantes, como os alojamentos, enquanto a vegetação naturalmente invade esses espaços abertos.
Os grandes pátios são utilizados como pontos de encontro, espaços de descompressão, descanso e incorporam as condições de luz natural, ventilação e acesso à natureza, além de reduzir o calor e controlar a umidade do ar. Os dois edifícios das moradas possuem térreo livre e acesso direto pelos pátios internos, possivelmente para aumentar a integração entre o edifício e o pátio aberto, criando uma interação entre eles e o público da escola.
A organização espacial adotada possibilitou a criação de espaços de uso comum no pavimento superior, no qual surge um espaço intermediário com fechamentos em meia altura, possibilitando a geração de um amplo piso que permitiu a interação e o diálogo entre o espaço exterior e interior, como pequenos mirantes que emolduram o horizonte e captam vistas para a vegetação do entorno e dos pátios internos. As visuais dos quartos estão voltados para as praças centrais, criando um ambiente de estar para eles. No andar superior, as visuais para a área de proteção ambiental do rio Javaé são privilegiadas, sendo protagonistas da composição projetual do ambiente construído.
Seguindo as mesmas premissas da arquitetura modernista brasileira, pode-se dizer que desde o princípio em Canuanã ocorreu uma busca por uma harmonia e a criação efetiva de vínculos do edifício com a paisagem circundante. Escadas de madeira conduzem os pátios e dormitórios às áreas de lazer, salas de leitura e TV protegidas das intempéries por telas de madeira ventiladas. Também há espaços para descansar em redes e passarelas superiores, pelas quais se visualiza o campus da escola com suas salas de aula, refeitório e clínica, sendo um caminho em extensão horizontal tão longo quanto os olhos atentos que qualquer aluno pode visualizar, como é possível identificar no diagrama da figura 5.
Os quartos são dispostos de forma a criar praças de convívio. Na parte em que o telhado está mais alto em relação ao térreo temos os acessos verticais aos andares superiores nos quais estão dispostas as áreas de estar e recreação dos adolescentes. O edifício é erguido por pilotis como elementos de transição entre a construção e o solo liberado para a livre circulação, contemplação da paisagem e relação mais íntima com o ambiente circundante.
Modulação Estrutural
A modulação estrutural é uma paliçada em madeira laminada colada, lançada uma malha de 5.90 x 5.90 m, com elementos pré-fabricados fora do canteiro de obras e levados até o local definitivo, onde foram fixados. Os arquitetos optaram por trabalhar com estrutura pré-fabricada por questões de economia e logística, pois isso economizaria muito tempo na obra. A escolha pelo emprego da madeira ficou clara quando os arquitetos associaram o material às intenções em obter grandes vãos no projeto, beleza estética e funcionalidade da obra. Entretanto, os arquitetos precisavam assegurar uma garantia mínima de 20 anos para a construção e não seria possível empregar qualquer tipo de madeira. Partindo desse entendimento, foram empregados elementos em madeira certificada de Eucalipto, seguindo duas técnicas antigas de colagem e laminação. A baixa densidade proveniente da estrutura em madeira possibilitou menores cargas de fundação, como também a cubagem de concreto nas sapatas da fundação. Cada vila é coberta por um leve telhado, de 160x65 metros, apoiado ao solo por delgados pilares de madeira, suspensos do chão e a materialidade empregada têm função importante, pois a região está sempre sob sol escaldante e chuvas torrenciais.
O conceito arquitetônico de um grande telhado sobre toda a edificação permitiu que a estrutura estivesse totalmente desvinculada da construção das paredes e divisões internas. A opção por método construtivo aliado a esse conceito de arquitetura permitiu que fosse traçado um planejamento por parte da construtora de fazer com que a cobertura da edificação fosse finalizada antes das épocas de chuva na região. Com isso a montagem da estrutura de MCL (Madeira Colada Laminada) durou 6 meses, com mais 2 meses de montagem das telhas.
Particularidades construtivas
Fundações
O projeto de fundações das novas moradas dos estudantes adotou um sistema de fundação direta com sapata corrida e sapata isolada. Podemos destacar também que o sistema construtivo de MCL proporcionou uma maior leveza nas estruturas que pôde ser aliviado nas fundações. No entanto, a análise sobre o tipo de solo foi o que influenciou na escolha do tipo de fundação, e por meio das sondagens, com amostragem e ensaios específicos em campo, foi possível notar que o nível do lençol freático estava a menos de 1 metro de profundidade.
Encontro pilar x fundação
Seguindo a metodologia de uma construção industrializada, foi necessário lançar um estudo sobre soluções apropriadas aos elementos estruturais pré-fabricados, aos quais pudessem se adequar a possíveis variações de dimensões in loco. Para isso a proposta da construtora ITA, responsável pelo desenvolvimento de toda a estrutura em MCL (Madeira Colada Laminada), foi a criação de um inserte metálico que fosse concretado junto com a fundação, porém com um sistema de rosca que permitisse o controle do nível no qual estaria a cruzeta de fixação do pilar de madeira. Foi proposto também um aparelho de apoio para suspender o pilar do chão, protegendo a madeira de possíveis danos por umidade, evitando o contato direto com o piso. A proposta da pilastra rés do chão, de uma forma geral, permitiu maior flexibilidade do sistema no sentido vertical, entretanto, a presença de uma cruzeta encaixada na usinagem da madeira exigiu grande precisão no sentido horizontal, uma complexidade construtiva que requereu mão de obra especializada. (Figura 7) .
Paredes de vedação
As paredes de vedação que conformam as lâminas (ou volumes) dos dormitórios foram erguidas com tijolos de solo-cimento produzidos em argila no próprio canteiro de obras, vencendo o problema de logística e de controle solar por suas propriedades térmicas, como resposta ao calor da região do Araguaia. Os tijolos naturalmente regulam a umidade e temperatura dos ambientes contribuindo para a entrega de uma construção ambientalmente sustentável. Além de suas vantagens econômicas e sustentáveis, o tijolo de solo-cimento é um elemento conhecido pela comunidade do Araguaia, técnica que remete a produção vernacular local, ponto vantajoso pois não causa estranhamento social (Figura 8). O encontro da madeira laminada com a alvenaria de tijolo cru é a simbiose do ancestral e do novo, da pré-fabricação e da construção in situ. Inspirada na prática vernácula, a inércia das paredes de solo-cimento dos dormitórios retém o calor e mantém o interior do ambiente fresco, enquanto o lúdico padrão de perfurações criado pela alvenaria lembra as construções da região.
Fabricação dos blocos (ou tijolos) de solo-cimento
O solo-cimento é produzido de maneira cuidadosa com material retirado in loco, evitando a extração de material orgânico encontrado na camada superficial do solo, entre 30 a 40cm de profundidade, pois isso pode prejudicar a durabilidade do bloco e da alvenaria. De acordo com o memorial técnico descritivo da obra, foi necessário buscar uma granulometria do solo com maior relação entre areia, silte e a argila, e nenhuma quantidade de agregados, como pedregulhos ou madeira. Inicialmente a terra é extraída e depois passa por uma peneira de malha #4mm, para a desagregação do material. Após o esfarelamento (peneiramento) a terra é misturada com água, em uma proporção empírica onde o teor recomendado de umidade foi verificado a partir da trabalhabilidade e plasticidade da terra quando é amassada. Após o amassamento inicial, a mistura descansa por 48 horas e depois passa por um outro processo de amassamento vigoroso, procedido por betoneiras. Em seguida é inserida em formas de madeira para dar prosseguimento ao processo de secagem, que ocorre em duas etapas. Na primeira etapa, o material enformado passa por secagem à meia sombra durante 5 dias. Já na segunda etapa, o material é exposto ao sol durante 15 dias e após o término, é desenformado e armazenado em local seco e abrigado da chuva.
Tubo de queda
A proposta arquitetônica de trabalhar o telhado de uma só água, fez com que surgisse dentro dos pátios internos os tubos de queda para o desague das águas pluviais. Com esse elemento presente no conjunto da paisagem central a proposta da arquitetura também foi tornar esse elemento funcional como parte do conjunto, dando um maior destaque em sua cor, com pintura eletrostática vermelha RAF 3020 e, também, com sua concepção dupla marcada por anéis de travamento.
A estrutura tubular dupla é travada por anéis metálicos e quando chega ao solo uma haste metálica, com dimensões de 5x7 centímetros e presa ao último anel de travamento, é chumbada na base de concreto para a estruturação integral do elemento que representa o tubo de queda.
Apesar de esteticamente agradável e visualmente arrojada, em uma análise pós-ocupação realizada pela diretoria da nova escola, notou-se que o desenho do elemento se tornou uma escada de acesso à cobertura, ou seja, as crianças utilizam as finas estruturas para brincar, o que em um ambiente de crianças e jovens torna-se um problema pois pode causar riscos de queda e graves acidentes.
Considerações sobre a obra
Canuanã (Figura 9) representa o grande esforço de todos os envolvidos em sobrepor as duas culturas da fazenda, rural e urbana, mesclando o conhecimento tecnológico com as atividades agrícolas. As vilas tornam-se a expressão de um mundo mais atual, em meio a um ambiente rural, inaugurando um ambiente contemporâneo para uma sociedade de cultura mais passadista que pelo projeto se moderniza. Os internatos representam uma nova interpretação de locais que rompem com a ideia de confinamento social e familiar, ampliando as vivências, com ações de participação e inclusão social, dando origem a uma modernidade inesperada, revelando, ao mesmo tempo, as qualidades do Brasil Profundo.
Participação e Entrega Social
A leitura do local e aproximação com a cultura da comunidade do Araguaia foram um suporte para entregar um projeto arquitetônico que fosse capaz de suprir as necessidades básicas do próprio programa, como escola e moradia e, ao mesmo tempo totalmente em harmonia com as tradições locais. Entretanto, foi necessário criar um ambiente que fosse totalmente funcional, mas ao mesmo tempo possibilitando uma associação com a forma pela qual a população do Araguaia está acostumada a viver.
O processo de projeto participativo foi o primeiro passo para originar uma arquitetura que refletisse os desejos dos estudantes da fazenda-Canuanã, inaugurando uma nova construção capaz de transmitir a sensação de continuidade dos valores da comunidade local e pertencimento às raízes da região do Araguaia. A abertura para opiniões compartilhadas, em colaboração com as crianças de Canuanã, durante a fase inicial de projeto, foi o fator que atribuiu à obra unicidade, qualidade construtiva e sucesso na entrega das vilas para os estudantes da Fundação Bradesco (Figura 10). Cada elemento do projeto teve uma razão, desde a cor, o tipo de material, a disposição dos ambientes, o formato da planta, altura do pé-direito, aproveitamento de luz natural, ventilação, orientação, ou seja, tudo teve conexão com o meio. Com isso, certas particularidades construtivas não teriam sido alcançadas se o processo de projeto respeitasse um modelo de desenvolvimento arquitetônico tradicional, sem colaboração.
Impacto Ambiental e Humanização
A decisão de construir os novos edifícios das moradas de Canuanã em estrutura pré-moldada de madeira laminada colada foi cuidadosamente estudada pela equipe de projeto, para garantir que a construção não só suprisse as necessidades estéticas e funcionais da obra, como também impactasse positivamente no contexto em questão. A escolha pela madeira foi um fator importante, por esse tipo de material ser capaz de se harmonizar com a natureza, agregar conceitos de sustentabilidade, pela disponibilidade dessa matéria-prima na região do Tocantins e por ser um material que agrada às pessoas. A disposição das funções pelo espaço aliada à materialidade e técnica construtiva inauguraram duas construções orientadas por princípios extremamente voltados para a preocupação com o diálogo humano, no qual cada espaço da escola promove, de fato, a qualidade das relações sociais entre as pessoas e fomento à sua utilização. A humanização da nova Canuanã foi promovida desde a concepção inicial do projeto com a aproximação entre arquitetos e sociedade local, revelando um mergulho profundo nas tradições e condições locais e da região do Araguaia. A participação dos estudantes nas atividades de reflexão sobre como seria a nova escola resultou na construção da noção de pertencimento deles com o espaço. Contudo, a equipe de projeto soube transferir essas ideias e conhecimento profundo sobre o lugar para a oficina de desenho, buscando elementos e materiais que concretizassem, de fato, a ancestralidade da comunidade indígena e humanização dos ambientes e espaços da construção.
Referências
Minicurrículos:
Como citar:
PALMIERI, Camila; CASTELO BRANCO, Caio; ROCHA, Francisco; BRANCO, Camila; PERRONE, Rafael. Moradas Infantis de Canuanã: diálogos entre a técnica e a natureza a partir da leitura de processo de projeto participativo. 5% Arquitetura + Arte, São Paulo, ano 16, v. 01, n.22, e189, p. 1-23, jul./dez. 2021. Disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/index.php/periodico/ciencias-sociais-aplicadas/385-moradas-infantis-de-canuana-dialogos-entre-a-tecnica-e-a-natureza-a-partir-da-leitura-de-processo-de-projeto-participativo
Submetido em: 2021-04-13
Aprovado em: 2021-12-07
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